Paulo Moraes Advogados

DOLO SEM VONTADE – BOATE KISS

ANALISE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DOLO SEM VONTADE (LUIS GRECO)_AO CASO KISS.

Autor; Paulo Marcos de Moraes

Prof Orientador; Marcelo Ruivo

RESUMO

O presente artigo discute a aplicabilidade da teoria do “dolo sem vontade”, desenvolvida por Luís Greco, ao emblemático caso da Boate Kiss, que resultou na morte de 242 pessoas. A teoria de Greco propõe uma concepção de dolo desvinculada da vontade empírica de causar o resultado, fundamentando-se, ao invés disso, na aceitação cognitiva dos riscos. Esse enfoque questiona a tradicional exigência de “anuência” com o resultado no dolo eventual, enfatizando que a simples aceitação do risco já poderia configurar dolo. No contexto do caso Boate Kiss, os sócios e responsáveis pela boate foram acusados e condenados de homicídio doloso eventual, sob a alegação de que assumiram o risco ao manterem o estabelecimento em condições de alta periculosidade. O artigo ainda inclui a análise de Marcelo Ruivo e Alexandre Wunderlich sobre a distinção entre dolo eventual e culpa consciente, ressaltando a importância de critérios empíricos rigorosos para a imputação de dolo. Sob uma ótica garantista, o estudo discute se a teoria de Greco e a abordagem de Ruivo e Wunderlich poderiam oferecer uma resposta penal mais técnica, proporcional e adequada ao caso, contribuindo para uma delimitação precisa da responsabilidade penal e evitando subjetividades que poderiam resultar em imputações desproporcionais.

PALAVRAS-CHAVE:

Dolo sem vontade; Boate Kiss; Teoria do dolo; Dolo eventual; Culpa consciente; Garantismo penal; Responsabilidade penal; Imputação penal; Anuência ao risco; Previsibilidade de risco; Luis Greco; Marcelo Ruivo; Alexandre Wunderlich; Direito penal; Análise crítica; Teoria cognitiva do dolo; Teoria funcionalista; Princípios da culpabilidade; Crimes complexos; Criminalidade econômica e ambiental.

INTRODUÇÃO

A tragédia da Boate Kiss, ocorrida em janeiro de 2013, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, resultou na morte de 242 pessoas e em graves ferimentos em outras centenas. Desde então, a qualificação jurídica dos responsáveis pelo evento gerou intensos debates, principalmente em relação à aplicação do dolo eventual. A dificuldade de distinguir dolo eventual de culpa consciente, especialmente em um caso de tamanha magnitude, deu margem a discussões mais profundas sobre o conceito de dolo.

Neste contexto, a teoria do “dolo sem vontade” de Luís Greco surge como uma alternativa inovadora para analisar os elementos subjetivos em crimes complexos como o da Boate Kiss. Segundo Greco, o dolo não requer necessariamente uma vontade empírica e explícita de causar o resultado, podendo ser configurado pela aceitação tácita dos riscos inerentes ao comportamento. Este artigo explora a aplicabilidade dessa teoria ao caso e suas implicações sob uma perspectiva garantista, aliada à visão crítica de Ruivo e Wunderlich sobre a distinção entre dolo eventual e culpa consciente no caso Kiss.

A TEORIA DO DOLO SEM VONTADE DE LUÍS GRECO

FUNDAMENTOS DA TEORIA

A teoria do dolo sem vontade, desenvolvida por Luís Greco, propõe uma mudança na tradicional concepção de dolo, que exige tanto a representação do resultado quanto a vontade de realizá-lo. Greco questiona a necessidade dessa vontade, defendendo uma [1]teoria cognitiva do dolo, na qual o conhecimento do risco é suficiente para configurar o dolo eventual, sem a exigência de uma “vontade” psicológica de causar o resultado.

Greco argumenta que a exigência de um desejo de causar o resultado pode ser substituída por uma análise da aceitação objetiva do risco, o que proporciona uma análise mais técnica e menos subjetiva. Para Greco, a configuração do dolo deveria ser feita com base na ciência do risco e na decisão do agente de seguir com sua conduta, aceitando tacitamente os possíveis resultados.

A VONTADE COMO CONCEITO NORMATIVO

[2]Na construção teórica de Greco, a “vontade” assume um papel normativo, afastando-se de uma análise psicológica. Assim, dolo eventual pode ser verificado em casos onde a conduta, social e juridicamente, representa uma indiferença ao bem jurídico protegido, ainda que não haja um desejo direto de causar o resultado. Esse entendimento se aproxima do funcionalismo, ao priorizar o sentido social da conduta e seu impacto, em vez do estado psíquico do agente.

A PERCEPÇÃO DE MARCELO RUIVO E ALEXANDRE WUNDERLICH SOBRE O CASO DA BOATE KISS

Em sua análise sobre o caso Boate Kiss, Marcelo Ruivo e Alexandre Wunderlich examinam os elementos constitutivos do dolo eventual e da culpa consciente, abordando a complexidade de aplicação desses conceitos em um caso de múltiplas vítimas e grande repercussão social. Para Ruivo e Wunderlich, a análise do dolo eventual no caso específico exige provas sólidas de que os réus não apenas previram o resultado, mas que também o aceitaram ou anuíram com sua ocorrência.

DIFERENÇA ENTRE DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE

[3]Ruivo e Wunderlich exploram, em seu parecer, a necessidade de uma distinção precisa entre dolo eventual e culpa consciente. Segundo os autores, o dolo eventual requer que o agente tenha aceitado o risco de forma indubitável, enquanto a culpa consciente pressupõe que o agente previu o risco, mas acreditou que ele não se concretizaria. Eles defendem que, para se comprovar o dolo eventual, é necessário demonstrar que os réus agiram com uma “total indiferença e desprezo” pela segurança e vida dos frequentadores .

CRÍTICA À PRESUNÇÃO DO DOLO NO CASO KISS

Ruivo e Wunderlich contestam a atribuição automática do dolo eventual baseada em suposições sobre o comportamento dos réus, argumentando que, sem uma anuência clara com o resultado, a conduta aproxima-se mais da culpa consciente. Eles destacam que a falta de provas concretas da aceitação do resultado, por parte dos réus, inviabiliza a caracterização do dolo eventual, ressaltando a necessidade de uma imputação que se sustente em dados empíricos, ao invés de presunções baseadas na gravidade do evento.

A defesa de Ruivo e Wunderlich pelo afastamento do dolo eventual é fundamentada na ausência de uma demonstração objetiva de que os réus aceitaram o risco fatal de sua conduta. Para eles, atribuir dolo eventual sem essa comprovação seria injusto e desproporcional, contrariando os princípios da legalidade e da culpabilidade. Nesse sentido, a visão dos autores alinha-se ao pensamento garantista, que prioriza a delimitação justa da responsabilidade penal, impedindo que a subjetividade na análise dos elementos subjetivos do crime conduza a condenações excessivas.

A CATEGORIZAÇÃO TÉCNICA DOS ELEMENTOS SUBJETIVOS

[4]Ruivo e Wunderlich defendem que a correta interpretação dos elementos subjetivos do tipo penal é essencial para uma resposta penal proporcional e justa. Eles argumentam que a definição entre dolo eventual e culpa consciente deve ser clara e fundamentada em critérios objetivos, de modo a evitar imputações infundadas. Ao analisar o caso Kiss, eles ressaltam a importância de não confundir previsibilidade com anuência, uma vez que a mera previsão do risco não é suficiente para configurar o dolo eventual.

APLICABILIDADE DA TEORIA DO DOLO SEM VONTADE AO CASO DA BOATE KISS

ANÁLISE DO CONHECIMENTO DO RISCO

[5]Com a teoria do dolo sem vontade, o dolo pode ser imputado a partir da previsão do risco e da aceitação tácita dos resultados. No caso da Boate Kiss, é indiscutível que os réus tinham ciência das condições perigosas do local. O uso de materiais inflamáveis, a superlotação e a falta de treinamento dos funcionários indicam que o risco era conhecido. Esse conhecimento poderia, segundo a teoria de Greco, ser suficiente para configurar dolo, pois os réus decidiram seguir com as atividades sem qualquer medida significativa para minimizar o perigo.

ACEITAÇÃO TÁCITA DOS RISCOS

Embora os réus não tivessem a intenção direta de provocar mortes, a continuidade das atividades, mesmo com a previsibilidade do risco de incêndio, demonstra uma aceitação tácita das possíveis consequências. A teoria de Greco permite que essa aceitação implícita seja considerada dolo eventual, uma vez que o agente, ciente do risco, prossegue em sua conduta, colocando em segundo plano a proteção do bem jurídico.

ASPECTOS GARANTISTAS E PROPORCIONALIDADE DA IMPUTAÇÃO PENAL

[6]A teoria de Greco responde aos princípios garantistas ao evitar uma imputação dolosa que exija prova de vontade psicológica de matar, contribuindo para a delimitação da responsabilidade penal de forma mais objetiva e proporcional. A teoria oferece uma alternativa à subjetividade na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, sem recorrer a uma “presunção de vontade” para justificar a imputação dolosa. Assim, respeita o princípio da culpabilidade ao requerer que o dolo esteja baseado em uma aceitação objetiva dos riscos envolvidos.

Sob a ótica de Ruivo e Wunderlich, a aplicação da teoria de Greco deve ser feita com cautela, garantindo que a análise do dolo eventual seja respaldada por uma verificação empírica da anuência ao risco. Dessa forma, a teoria de Greco pode auxiliar na interpretação do caso, desde que alinhada com a necessidade de evitar presunções que extrapolem a realidade probatória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A teoria do dolo sem vontade, proposta por Luís Greco, oferece uma abordagem inovadora para a análise do dolo eventual, desvinculando-o da exigência de uma vontade empírica. No caso da Boate Kiss, essa teoria permite uma imputação mais técnica e fundamentada na aceitação tácita do risco, sem a necessidade de uma anuência explícita com o resultado.

A percepção de Marcelo Ruivo e Alexandre Wunderlich reforça a necessidade de critérios empíricos rigorosos para a verificação do dolo eventual, defendendo uma interpretação que priorize a objetividade e evite uma aplicação automática do dolo em situações de elevado risco. Sob uma visão garantista, essa abordagem ajuda a evitar exageros na interpretação da intenção subjetiva dos réus, reforçando a necessidade de uma base empírica sólida para a configuração do dolo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF restabelece condenações no caso da boate Kiss e determina prisão de réus. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-restabelece-condenacoes-no-caso-da-boate-kiss-e-determina-prisao-de-reus/ Acesso em: 04 de nov. 2024.

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DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Questões fundamentais da doutrina do crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

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[1] 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF restabelece condenações no caso da boate Kiss e determina prisão de réus. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-restabelece-condenacoes-no-caso-da-boatekiss-e-determina-prisao-de-reus/ Acesso em: 04 de nov. 2024. 3 OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma, FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. A PEC 8/2021 e a limitação das decisões monocráticas nos tribunais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-17/renoldi-fariadecisoes-monocraticas-tribunais/. Acesso em: 05 de nov. 2024. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Incêndio no Edifício Joelma. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/PrimeiraInstancia/GestaoDocumental/Comunicado?codigoComunicado=39277&pagin a=1. Acesso em: 02 de nov. 2024. 5 Sobre a tragédia no Joelma ver: Edifício Joelma: relembre tragédia que há 50 anos deixava 187 mortos e centenas de feridos em incêndio. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/saopaulo/noticia/2024/02/01/edificio-joelma-relembre-tragedia-que-ha-50-anos-deixava-187 mortos-e-centenasde-feridos-em-incendio.ghtml. Acesso em: 31 de out. 2024; Edifício Joelma: 50 anos depois, marcas do incêndio permanecem. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-01/edificio-joelma50-anos-depois-marcas-do-incendio-permanecem. Acesso em: 31 de out. 2024. Sobre a divergência do número de vítimas do Edifício Joelma ver: Edifício Joelma: Como o trágico incêndio abalou a população paulista e

[2] GRECO, Luís. Dolo Sem Vontade. In: GRECO, Luís; LOBATO, Alex. Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[3] WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almeida. Culpa consciente e dolo eventual (Parecer Caso “Boate Kiss”: Santa Maria/RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 161, p. 365-390, nov. 2019.

[4]

[5] WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo Almeida. Culpa consciente e dolo eventual (Parecer Caso “Boate Kiss”: Santa Maria/RS). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 161, p. 365-390, nov. 2019.

[6] GRECO, Luís. Dolo Sem Vontade. In: GRECO, Luís; LOBATO, Alex. Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

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