A Responsabilidade do Hospital na Atuação Técnico-Profissional do Médico: Análise sob o Prisma da Responsabilidade Objetiva e Subjetiva
A responsabilidade dos hospitais na atuação de médicos que ali prestam serviços, sejam empregados, contratados ou conveniados, levanta debates sobre a extensão e os limites da responsabilização civil e penal das instituições hospitalares. Amparada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e pelo Código Civil, a jurisprudência brasileira tem delineado essa responsabilização, considerando a estrutura de consumo e a posição de vulnerabilidade do paciente, que se encontra inserido numa relação de confiança e dependência de cuidados.
- A Base Jurídica da Responsabilidade Objetiva dos Hospitais
O artigo 14 do CDC estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços pelos defeitos que causam danos aos consumidores, independentemente de culpa. Nos serviços hospitalares, essa responsabilidade estende-se ao hospital, que responde objetivamente pelos danos causados por seus prepostos no exercício das funções para as quais foram contratados, especialmente quando os profissionais de saúde agem em nome e sob a estrutura organizacional da instituição.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) é clara ao definir que o hospital particular responde objetivamente pelos danos praticados por profissionais de saúde, desde que estes estejam atuando dentro das atividades para as quais foram contratados. Conforme decisão:
“O hospital particular responde objetivamente pelos danos praticados pelos profissionais de saúde no exercício da função para a qual foram contratados, conforme previsto no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.” (Acórdão 1859208, TJDFT)
- Responsabilidade Subjetiva e a Culpa do Médico: Artigo 14, §4º do CDC e Artigo 951 do Código Civil
Embora a responsabilidade do hospital seja objetiva, a do médico é, em regra, subjetiva, exigindo a comprovação de culpa, como previsto no art. 14, §4º do CDC e no art. 951 do Código Civil. Esses dispositivos consagram a teoria da culpa na responsabilidade dos profissionais liberais, como médicos, o que implica que a responsabilização depende da demonstração de que o serviço foi prestado de forma culposa — seja por negligência, imprudência ou imperícia.
Decisões do STJ e de outros tribunais reforçam que a responsabilidade do médico, em suas atividades técnicas, depende da prova de sua culpa. Em um recente julgado do TJDFT, envolvendo cirurgia plástica para fins estéticos (uma obrigação de resultado), decidiu-se que:
“A responsabilidade tanto do profissional de saúde, como do hospital não prescinde da demonstração da culpa […] cabendo ao profissional garantir o benefício pretendido pelo paciente.” (Acórdão 1893189, TJDFT)
Aqui, a decisão ressalta que em procedimentos estéticos, onde o médico assume uma obrigação de resultado, é esperado que ele entregue o benefício prometido ao paciente; caso contrário, deve haver prova clara de que a falha decorreu de sua conduta culposa.
- Excludentes de Responsabilidade do Hospital: Profissionais sem Vínculo Empregatício
A jurisprudência tem reafirmado que a responsabilidade do hospital se restringe aos atos dos profissionais com vínculo contratual ou de subordinação. Se um médico realiza atendimento em nome próprio e utiliza apenas as instalações hospitalares, sem vínculo de subordinação, o hospital não responde pelos erros deste. O TJDFT elucidou essa questão:
“Inexiste responsabilidade solidária entre a instituição hospitalar e o médico responsável, por eventuais erros cometidos com culpa profissional por esse último, o qual não compõe o polo passivo da lide.” (Acórdão 1843125, TJDFT)
Essa linha de entendimento é endossada pela Súmula 341 do STF, que também prevê a responsabilidade objetiva dos hospitais para atos de profissionais empregados, limitando-a aos que possuem algum vínculo com a instituição, como ocorre no caso de médicos contratados sob regime de CLT ou outros contratos de prestação de serviços diretamente vinculados à organização hospitalar.
- Jurisprudência Superior: Obrigações do Complexo Hospitalar e o Dever de Supervisão
A jurisprudência do STJ tem consolidado o entendimento de que o complexo hospitalar deve fornecer recursos materiais e humanos adequados e garantir o acompanhamento dos pacientes durante sua estadia. Em recente julgado, o STJ reafirmou que a responsabilidade dos hospitais é objetiva em relação à infraestrutura e organização, cabendo à instituição manter as condições de segurança necessárias para os tratamentos:
“A responsabilidade objetiva da instituição exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado, limitando-se ao fornecimento de recursos materiais e humanos auxiliares adequados.” (AgInt nos EDcl no AREsp 1937242/RJ, STJ)
Esse julgamento deixa claro que a instituição hospitalar não responde por atos técnicos de profissionais independentes, ou seja, que não estejam integrados em sua equipe sob vínculos contratuais ou de subordinação.
- Responsabilidade Objetiva vs. Subjetiva: Análise das Obrigações dos Profissionais Liberais e a Cadeia de Consumo
Em temas de responsabilidade civil, especialmente no tocante à cadeia de consumo, o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu um sistema de proteção ampliada ao consumidor, que abrange a responsabilização solidária dos entes integrantes dessa cadeia. Por isso, os hospitais, na condição de fornecedores de serviços, têm responsabilidade objetiva, enquanto a responsabilidade dos médicos permanece subjetiva. A distinção está bem ilustrada na decisão do STJ, que afirma:
“(i) A responsabilidade objetiva da instituição exsurge somente em decorrência de defeito no serviço prestado (art. 14, caput, do CDC); (ii) atos técnicos praticados por médicos independentes são de responsabilidade subjetiva.” (REsp 1.145.728/MG, STJ)
Essa jurisprudência assegura a aplicação equilibrada da responsabilidade entre os entes envolvidos, de modo a evitar o ônus desproporcional ao hospital e, ao mesmo tempo, garantir que o paciente seja protegido contra eventuais falhas sistêmicas.
- O Papel da Inversão do Ônus da Prova
No contexto da responsabilidade hospitalar e médica, o CDC prevê a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor, especialmente quando há indícios de hipossuficiência ou dificuldade técnica para o paciente comprovar a culpa do médico ou o defeito do serviço. O artigo 6º, inciso VIII, do CDC faculta ao juiz, quando detectada a fragilidade da parte, determinar a inversão do ônus da prova, impondo ao hospital o dever de demonstrar a inexistência de falha.
Conclusão
A responsabilidade dos hospitais em relação à atuação de médicos é um tema de grande complexidade e que demanda análise detalhada do vínculo entre o profissional e a instituição, bem como do próprio conceito de responsabilidade objetiva e subjetiva. Embora o hospital responda objetivamente por falhas em seus serviços, incluindo a prestação de recursos e estrutura adequada, a responsabilidade técnica do médico exige a prova da culpa, o que impede a responsabilização automática do profissional de saúde.
A jurisprudência tem evoluído para delimitar essas responsabilidades, considerando o equilíbrio necessário entre a proteção do consumidor e a salvaguarda do exercício profissional autônomo dos médicos. Em um contexto onde os riscos são inerentes à atividade hospitalar, é fundamental que tanto médicos quanto hospitais estejam cientes dos limites e possibilidades de sua atuação, assegurando o cumprimento de seus deveres sem, contudo, extrapolar o que o ordenamento jurídico define como responsabilidade solidária e objetiva.
Este artigo buscou proporcionar uma visão abrangente da temática, fundamentada na análise de jurisprudências recentes e na interpretação legal, evidenciando o papel da responsabilidade objetiva na proteção dos direitos dos consumidores e a importância da responsabilidade subjetiva na salvaguarda da prática médica.