Paulo Moraes Advogados

Requisito para Busca a Luz do Tema 1163 da Repercussão Geral do STJ

Este artigo analisa em profundidade o REsp 1.990.972, recentemente afetado pelo STJ e relatado pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz, que aborda a importante questão da validade de ingresso policial em domicílio sem mandado judicial e sem consentimento válido do morador, focando especificamente em situações em que a polícia realiza essa abordagem com base em uma fuga suspeita ou em denúncias anônimas desacompanhadas de outros elementos probatórios. O caso, que levanta o Tema 1163, questiona se tais condições isoladas podem, por si só, constituir justa causa para a violação da inviolabilidade domiciliar prevista na Constituição.
Ao afetar o caso para o julgamento como representativo da controvérsia, o STJ delineou que a questão jurídica está restrita à interpretação da “justa causa” para a entrada domiciliar sem ordem judicial. Em outras palavras, cabe ao Tribunal esclarecer se a simples fuga ou uma denúncia anônima não corroborada poderiam fundamentar legalmente a intervenção policial. No entanto, o posicionamento jurisprudencial, especialmente com referência ao HC 598.051/SP (Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 2021), indica que o STJ tem tradicionalmente exigido que o consentimento para entrada em domicílio seja claramente documentado e que qualquer dúvida sobre sua voluntariedade seja resolvida em desfavor do Estado, garantindo-se que a entrada se ampare em provas verificáveis, como gravações em áudio e vídeo.
Em casos anteriores, o STJ já enfrentou o tema da entrada sem autorização judicial, rejeitando a validade de intervenções baseadas apenas em atitudes suspeitas ou meras denúncias. Por exemplo, no HC 611.918/SP (Rel. Min. Nefi Cordeiro, 2020), ficou claro que uma denúncia anônima, sem elementos corroborativos adicionais, não legitimava a invasão domiciliar. Da mesma forma, no AgRg no RHC n. 150.798/MG e outras decisões correlatas, o Tribunal apontou que a detecção de odores característicos de drogas, associada a uma prévia diligência investigativa, poderia constituir justa causa, desde que a entrada estivesse alicerçada em elementos objetivos que poderiam ser posteriormente verificados.
Precedentes da Suprema Corte Americana e a Valoração da Boa-fé e da Justa Causa
Essa análise jurisprudencial brasileira sobre a justa causa encontra ressonância na jurisprudência norte-americana, onde a SCOTUS estabeleceu, em Terry v. Ohio (1968), que a simples intuição ou “hunch” policial não é suficiente para justificar uma busca. A Corte concluiu que seriam necessários “fatos específicos e articuláveis” que permitam uma interpretação objetiva e fundamentada da ação policial. Esse standard, se aplicado no contexto brasileiro, reforça a necessidade de que as autoridades policiais documentem as circunstâncias concretas que fundamentam a suspeita, permitindo um exame rigoroso sobre a legalidade das medidas.
A abordagem de “boa-fé” como excludente de prova, explorada em United States v. Peltier (1975), consolidou a ideia de que ações policiais poderiam ser validadas mesmo quando baseadas em leis posteriormente declaradas inconstitucionais, desde que os policiais atuassem em boa-fé e que a aplicação retroativa da norma não teria efeito dissuasório sobre a prática policial. No entanto, para que o Estado se beneficie dessa excludente, seria necessário demonstrar que a intervenção policial respeitou os limites do razoável e do necessário, o que contrasta diretamente com a subjetividade do “tirocínio” frequentemente invocado pela polícia no Brasil.
Em casos de tráfico de drogas, precedentes como Segura v. United States (1984) e Murray v. United States (1988) reforçaram a validade de ações que, embora realizadas sem mandado inicial, estavam amparadas em um padrão investigativo claro, incluindo vigilância prévia e observação objetiva de comportamentos suspeitos. Em contraste, Murray teve sua decisão invalidada porque a SCOTUS identificou uma falha na documentação e na apresentação dos elementos de prova pela autoridade policial, uma lacuna que enfraqueceu a confiança no processo probatório. Este é um ponto crucial para o debate no contexto brasileiro, pois a insuficiência de registros detalhados sobre a diligência policial reduz a fiabilidade e a legitimidade das provas obtidas, especialmente em uma era em que métodos como a gravação audiovisual estão ao alcance dos órgãos de segurança.
A Denúncia Anônima como Elemento Inicial, mas não Suficiente
Embora a denúncia anônima tenha relevância e até incentivo em tratados internacionais, como na Convenção de Palermo, seu valor probatório isolado é limitado. O STJ reitera que essa forma de comunicação pode motivar investigações preliminares, mas, na ausência de suporte probatório adicional, ela não deve justificar diretamente medidas invasivas. Isso alinha-se à doutrina probatória e aos padrões de exclusão de provas da jurisprudência norte-americana, como em Mapp v. Ohio (1961), onde a SCOTUS destacou a exclusão de provas como ferramenta para desincentivar a má conduta policial.
A Utilização de Meios Tecnológicos para Documentação e Controle da Ação Policial
No cenário brasileiro, a recente decisão do STF no caso ADPF 635, que determina a instalação de sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas e uniformes dos policiais no Estado do Rio de Janeiro, ilustra um avanço no controle e na transparência das ações policiais. Essa medida, que reflete recomendações internacionais e práticas implementadas em países como os Estados Unidos, fortalece a possibilidade de auditoria das operações e promove maior controle sobre as fundadas razões e sobre a legalidade do consentimento para a entrada em domicílio. Além disso, assegura a imparcialidade e a conformidade das ações policiais, limitando a subjetividade e minimizando o risco de abusos decorrentes de “perfis” raciais e preconceitos estruturais, um ponto relevante no contexto do julgamento da SCOTUS em Utah v. Strieff (2016).
Conclusão e Reflexão: A Construção de um Padrão de Justa Causa no Brasil
O Tema 1163 do STJ, em análise, representa um momento importante para definir parâmetros sólidos e exigentes para a atuação policial em situações de ingresso domiciliar sem autorização judicial. É necessário que o Judiciário brasileiro exija um “ônus argumentativo” rigoroso, no qual as autoridades policiais sejam compelidas a apresentar e a documentar, de forma clara e objetiva, os fatos e as circunstâncias que embasam sua suspeita. Essa medida não apenas assegura o respeito aos direitos fundamentais do cidadão, como também promove a efetividade probatória e a legitimidade das intervenções policiais, consolidando um padrão de justa causa que esteja em conformidade com o devido processo legal.
A experiência da jurisprudência norte-americana sugere que a proteção dos direitos constitucionais, aliada ao incentivo para boas práticas policiais, não apenas protege o cidadão de ações arbitrárias, mas também legitima o trabalho policial quando este é realizado com fundamentação robusta e documentada. A aplicação dessa lógica no sistema judicial brasileiro, com a exigência de maior rigor e transparência, tem o potencial de consolidar uma jurisprudência protetiva, que prioriza os direitos constitucionais e que assegura que as intervenções no âmbito domiciliar sejam sempre pautadas na legalidade, na proporcionalidade e na fundamentação rigorosa.
Bibliografia
•BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 598.051/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 02/03/2021.
•BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 611.918/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 07/12/2020.
•BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 150.798/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/08/2021.
•BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 512.418/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 26/11/2019.
•BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 05/08/2020.
•Estados Unidos. Suprema Corte dos Estados Unidos. Terry v. Ohio, 392 U.S. 1 (1968).
•Estados Unidos. Suprema Corte dos Estados Unidos. Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961).
•Estados Unidos. Suprema Corte dos Estados Unidos. Segura v. United States, 468 U.S. 796 (1984).
•Estados Unidos. Suprema Corte dos Estados Unidos. Utah v. Strieff, 579 U.S _ (2016).
 Site, migalhas;31 de dezembro de 2024 https://www.migalhas.com.br/depeso/374016/requisitos-para-buscas-condutas-esperadas-das-autoridades-policiais

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