Paulo Moraes Advogados

OPERAÇÃO OPEN DOORS

OPERAÇÃO OPEN DOORS: AGRG NO RHC 143.169/RJ E A CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA DIGITAL

 

Paulo Marcos de Moraes

RESUMO

O caso trata da Operação Open Doors, que investigou um esquema de fraudes eletrônicas e furtos bancários praticados por organização criminosa. No processo, a defesa alegou quebra da cadeia de custódia de provas digitais obtidas em computadores apreendidos na residência do acusado, além de cerceamento de defesa por suposta ocultação de partes do acordo de colaboração premiada que embasou as buscas.

O Superior Tribunal de Justiça, por maioria, declarou inadmissíveis as provas digitais e suas derivadas, entendendo que não houve qualquer documentação dos procedimentos policiais na coleta, guarda e perícia dos dados – o que comprometeu sua confiabilidade. O voto-vista do Min. Ribeiro Dantas destacou que a cadeia de custódia é exigência lógica do art. 158 do CPP, mesmo antes da Lei 13.964/2019, e que provas digitais exigem rigor técnico, como cópias bit a bit, geração de hash e registros formais de manuseio.

O precedente reforça que sem integridade e documentação adequada, a prova é inadmissível, protegendo o devido processo legal e reafirmando o papel do Judiciário no controle da legalidade da atuação estatal. Trata-se de um marco jurisprudencial sobre a admissibilidade de provas digitais no processo penal brasileiro.

 

PALAVRAS-CHAVE

PROVAS DIGITAIS; CADEIA DE CUSTODIA; DIREITO PENAL ECONÔMICO; OPERAÇÕAOPEN DOORS;

 

Introdução ou Contextualização

No âmbito da Operação Open Doors, deflagrada no Rio de Janeiro, investigou-se uma suposta organização criminosa voltada a furtos eletrônicos contra instituições financeiras. Essa operação gerou um importante precedente jurisprudencial no Superior Tribunal de Justiça (STJ) – o Agravo Regimental no Recurso em Habeas Corpus nº 143.169/RJ – que trouxe à tona debates cruciais sobre a admissibilidade da prova digital e a cadeia de custódia no processo penal. Em essência, discutiu-se se arquivos extraídos de computadores apreendidos (supostamente usados em crimes cibernéticos) poderiam ser admitidos como prova, diante de alegadas falhas na preservação e documentação de sua integridade.

A relevância do caso decorre do contexto contemporâneo: com a crescente digitalização de evidências, questões sobre como coletar, armazenar e verificar provas digitais ganharam destaque. A manutenção da cadeia de custódia – isto é, o rastreamento e registro de todos os passos percorridos pela evidência desde a coleta até sua apresentação em juízo – revela-se fundamental para garantir que a prova não seja adulterada ou contaminada. Em 2019, o legislador brasileiro reforçou esse aspecto através da Lei 13.964/2019, que introduziu os arts. 158-A a 158-F no Código de Processo Penal (CPP) para disciplinar detalhadamente a cadeia de custódia. Porém, o caso em exame envolveu fatos ocorridos antes da vigência dessa lei, o que suscitou discussões sobre a aplicabilidade de tais conceitos de forma retroativa. Ainda assim, o STJ ressaltou que a necessidade de preservar a cadeia de custódia não é uma inovação de 2019, mas sim uma decorrência lógica do clássico conceito de corpo de delito já consagrado no CPP​conjur.com.br.

Diante disso, este estudo de caso analisará de forma didática e crítica os detalhes do precedente do AgRg no RHC 143.169/RJ. Serão apresentados o contexto fático-jurídico e as principais teses debatidas, para então examinar os fundamentos do julgamento (especialmente o voto-vista do Ministro Ribeiro Dantas, que conduziu a decisão colegiada). Por fim, discutiremos os impactos jurídicos e institucionais desse caso, relacionando-os com garantias processuais e com a doutrina moderna sobre provas digitais – a exemplo das lições de Gustavo Badaró, Geraldo Prado e outros autores contemporâneos (Athayde; Araújo; Teixeira et al.). O objetivo é oferecer uma visão clara e acessível, útil a estudantes e operadores do direito, sobre como o caso Open Doors contribuiu para o aperfeiçoamento do processo penal no tocante à prova eletrônica.

Narração do Caso

Acusação e investigação: Em 8 de setembro de 2018, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP/RJ) ofereceu denúncia contra R.L.S.M. (paciente do habeas corpus) e outros seis corréus, no bojo da Operação Open Doors​conjur.com.brconjur.com.br. Segundo a denúncia, tratava-se de uma vasta organização criminosa, composta por centenas de pessoas, dedicada a praticar furtos mediante invasão de sistemas bancários e fraudes eletrônicas. R.L.S.M. foi apontado como integrante do núcleo de hackers líderes do esquema, supostamente envolvido em 81 furtos eletrônicos, que teriam subtraído cerca de R$ 3,3 milhões (com projeção de que o montante total poderia chegar a R$ 30 milhões)​conjur.com.br. Os crimes imputados incluíam furto qualificado (praticado repetidas vezes), organização criminosa e lavagem de dinheiro.

No curso do inquérito policial, foram cumpridos mandados de busca e apreensão na residência do investigado, resultando na apreensão de computadores e outros dispositivos digitais​conjur.com.br. Também foram judicialmente autorizadas quebras de sigilo de dados desses aparelhos​conjur.com.br. O detalhe crucial é o procedimento adotado após a apreensão: em vez de encaminhar de imediato os equipamentos ao órgão pericial oficial, a autoridade policial teria entregue os computadores apreendidos a uma das instituições financeiras vítimas para análise técnica preliminar. De fato, consta que em 23/10/2017 a equipe de TI do banco realizou uma perícia nos dispositivos​conjur.com.br. Somente semanas depois, em 15/11/2017 e 21/11/2017, a Polícia Civil efetuou suas próprias perícias nos mesmos computadores​conjur.com.br. Em outras palavras, a primeira extração de dados dos computadores foi feita por particulares (a equipe do banco lesado), antes da perícia oficial.

Teses da defesa: Após a denúncia ser recebida em 12/09/2018​conjur.com.br, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). No HC, dois principais pontos foram suscitados​conjur.com.br:

  1. Quebra da cadeia de custódia do material eletrônico apreendido: A defesa argumentou que permitir que os computadores passassem pelas mãos da instituição financeira, fora do controle pericial estatal e sem a devida documentação dos procedimentos, comprometeu a integridade da prova. Em suma, sustentou-se que qualquer evidência digital extraída desses dispositivos estaria contaminada e deveria ser considerada inadmissível, nos termos do art. 157 do CPP (que prevê a exclusão de provas ilícitas e de suas derivadas).
  2. Cerceamento de defesa – acesso aos autos da colaboração premiada: Paralelamente, a defesa alegou que não teve acesso completo a certos elementos do acordo de colaboração premiada de um corréu (identificado como colaborador H.E.S. da S.), o qual teria embasado a ordem de busca e apreensão contra R.L.S.M. Assim, haveria ocultação de provas pela acusação, violando a Súmula Vinculante nº 14 do STF (que garante ao defensor acesso amplo aos elementos de prova da investigação). Em especial, afirmaram que apenas poucas páginas do acordo e do depoimento do colaborador lhes foram disponibilizadas – nelas contendo apenas “2 linhas com 2 menções ao paciente” – levando a crer que partes importantes do acordo (que detalhariam a participação de R.L.S.M. na organização) não teriam sido exibidas​conjur.com.br. Isso configuraria cerceamento de defesa, pois o magistrado de primeira instância possivelmente teria se baseado em declarações não reveladas para deferir as buscas.

Trâmite e decisões nas instâncias inferiores: O TJRJ, no julgamento do habeas corpus originário, denegou a ordem (ou seja, não concedeu o HC). Os desembargadores entenderam, de um lado, que a questão da cadeia de custódia demandaria aprofundamento probatório incompatível com a via estreita do HC; de outro, que não haveria prova de cerceamento, visto que a defesa teve acesso ao acordo de colaboração na medida do necessário​conjur.com.brconjur.com.br. Em trecho da decisão, o TJRJ ressaltou que verificar todo o percurso do computador e eventuais vícios na sua apreensão/exame exigiria análise de fatos complexos, devendo tal discussão ocorrer durante a instrução criminal e não via habeas corpus​conjur.com.br. Ademais, enfatizou que a defesa não demonstrou efetivo extravio de dados ou impedimento de acesso às provas digitais, sendo ônus do impetrante comprovar tais alegações​conjur.com.br. Nos embargos de declaração interpostos pela defesa, o Tribunal local os rejeitou, acrescentando que a mera extração de dados de um computador não constituiria “perícia” formal (art. 159 CPP), e que eventual exame pericial poderia ser feito a posteriori sem prejuízo – ou seja, a falta de perito oficial no ato de copiar os dados não implicaria nulidade naquele momento​conjur.com.brconjur.com.br. No mesmo julgado, entendeu-se que não houve quebra da cadeia de custódia, pois os dados permaneceriam sob autorização judicial e poderiam ser compartilhados com a vítima (banco) para prevenir novos delitos​conjur.com.br. Segundo a visão do TJRJ, “não há nulidade, porque não há quebra da cadeia de custódia da prova”, e permitir o acesso dos dados à instituição financeira lesada seria legítimo dada a regular autorização judicial e a necessidade de evitar futuros crimes​conjur.com.br.

Insatisfeita, a defesa de R.L.S.M. recorreu ao STJ via Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC), reiterando as mesmas teses. Esse recurso, porém, foi inicialmente negado monocraticamente pelo então relator, Ministro João Otávio de Noronha (ou seja, ele indeferiu o pedido sem levar a julgamento colegiado)​conjur.com.br. Contra a decisão monocrática, interpôs-se o Agravo Regimental nº 143.169 – forçando, assim, a apreciação do caso pela Turma (Quinta Turma do STJ). Durante a sessão de 25/10/2022, o Ministro Jesuíno Rissato (que sucedera o relator original) chegou a votar negando provimento ao agravo regimental, alinhando-se aos fundamentos do TJRJ e do Ministério Público Federal (que opinara pelo desprovimento)​conjur.com.brconjur.com.br. Nesse momento, contudo, o Ministro Ribeiro Dantas pediu vista dos autos, ou seja, solicitou tempo para examinar melhor o caso dada sua “excepcional complexidade”​file-chcehadjhhs336wxzyp8uv. O pedido de vista foi acolhido e o processo ficou pendente até o início de 2023. Em 07/02/2023, Ribeiro Dantas apresentou seu voto-vista, divergindo parcialmente do relator. Esse voto, caracterizado por análise minuciosa e didática, acabou prevalecendo como condutor do acórdão final, com acompanhamento dos demais ministros da Turma​conjur.com.br.

Julgamento no STJ – voto-vista do Min. Ribeiro Dantas: No julgamento do agravo regimental, conforme o voto-vista, o STJ decidiu parcialmente a favor da defesa. Em relação à alegação de cerceamento de defesa pelo acordo de colaboração, a Quinta Turma negou provimento (mantendo a decisão desfavorável à defesa nesse ponto). O Ministro Ribeiro Dantas concordou que faltou à defesa instruir adequadamente o HC com os documentos necessários para comprovar a suposta omissão de acesso​conjur.com.brconjur.com.br. Ele observou que a defesa, apesar de afirmar ter recebido somente partes do acordo e do depoimento do colaborador, não juntou ao habeas corpus cópia desses próprios documentos que teve em mãos​conjur.com.brconjur.com.br. Sem poder ler o acordo e o termo de declarações, tornava-se impossível ao STJ verificar se de fato havia informações incriminadoras omitidas ou não​conjur.com.brconjur.com.br. Nesse sentido, Ribeiro Dantas ressaltou o conhecido entendimento de que cabe ao impetrante instruir o habeas corpus com prova pré-constituída de suas alegações​conjur.com.brconjur.com.br. Ele chegou a citar precedente do STJ e doutrina (Grinover, et al.) enfatizando que, por se tratar de ação de rito sumário, o habeas corpus não comporta fase de coleta de provas – a petição inicial já deve vir acompanhada dos documentos necessários​conjur.com.br. Desse modo, como não estava comprovada a suposta “ocultação” de partes do acordo de colaboração (por omissão probatória da própria defesa), negou-se a ordem nesse particular, mantendo incólume as decisões anteriores quanto a esse ponto.

Contudo, quanto à questão da prova digital e cadeia de custódia, o STJ acolheu os argumentos defensivos. Ribeiro Dantas divergiu do relator Rissato e entendeu que, sim, houve violação grave das regras de preservação da prova, comprometendo a confiabilidade dos elementos obtidos​conjur.com.brconjur.com.br. Preliminarmente, afastou a alegação de que o tema não poderia ser examinado em HC por demandar prova – notou que o próprio TJRJ chegou a enfrentá-lo (embora superficialmente) e que era possível verificar nos autos a ausência de documentação sobre os procedimentos adotados, sem necessidade de dilação probatória​conjur.com.br. No mérito, o voto-vista fez uma detalhada análise técnico-jurídica da cadeia de custódia das provas digitais. Alguns trechos e fundamentos centrais do voto merecem destaque:

  • Ribeiro Dantas começa por explicar o conceito e finalidade da cadeia de custódia. Como decorrência lógica do art. 158 do CPP (exame de corpo de delito), a cadeia de custódia visa assegurar que os vestígios recolhidos de um crime sejam exatamente os mesmos apresentados em juízo, sem adulteração ou troca​conjur.com.br. Ou seja, garante a identidade e integridade da prova do crime durante todo o percurso sob custódia estatal. Para isso, diferentes tipos de vestígios exigem técnicas próprias de preservação e exame – um cadáver requer procedimentos distintos de uma arma de fogo, e assim por diante​conjur.com.brconjur.com.br. No caso dos dados informáticos (vestígios imateriais ou de natureza volátil), há métodos específicos bem conhecidos para resguardar sua mesmidade (termo cunhado pelo professor Geraldo Prado)​conjur.com.br.
  • O voto descreve as boas práticas periciais em informática: ao apreender um computador ou dispositivo de memória, a autoridade deve fazer uma cópia integral (bit a bit) de seu conteúdo, gerando uma imagem forense que espelhe fielmente os dados originais​conjur.com.brconjur.com.br. Em seguida, aplica-se um algoritmo de hash (função de resumo criptográfico) para obter um código único da imagem copiada​conjur.com.br. Esse hash funciona como uma “impressão digital” do arquivo: se qualquer bit da informação for alterado, o código gerado será completamente diferente, dado o chamado efeito avalancheconjur.com.brconjur.com.br. Assim, comparando os hashes calculados no momento da coleta e da futura perícia (ou apresentação em juízo), é possível detectar qualquer alteração, mesmo mínima, no conteúdo do dispositivo​conjur.com.br. Se os hashes permanecerem idênticos, atesta-se com altíssima confiabilidade que a fonte de prova se manteve intacta​conjur.com.br. Essas técnicas de espelhamento e hash já eram consagradas na literatura muito antes da lei de 2019 – o ministro cita, a título exemplificativo, um estudo de 2022 na Revista Brasileira de Execução Penal, que reforça a importância de criar uma cópia bit a bit, extrair o código hash, lacrar e armazenar o dispositivo, mantendo sempre um registro escrito de todos os manuseios (cadeia de custódia atualizada)​conjur.com.brconjur.com.br.
  • Além de referências técnico-científicas, o voto-vista convoca a doutrina processual penal contemporânea para embasar suas conclusões. Ribeiro Dantas transcreve ensinamentos do professor Gustavo Badaró, enfatizando a necessidade de métodos que garantam a integridade da prova digital e sua força probatória. Badaró explica que é imprescindível realizar um espelhamento (cópia bit a bit) do disco, calcular o hash para verificar a perfeita identidade entre cópia e original, preservando-se o material original e atestando-se a autenticidade do material examinado​conjur.com.brconjur.com.br. Importante também é documentar todas as etapas desse procedimento – cada passo deve ser registrado, como garantia da correta observância dos protocolos operacionais e para viabilizar a fiscalização pelas partes em juízo​conjur.com.brconjur.com.br. Justamente pela volatilidade e especificidade da prova digital (que não “fala” por uma linguagem natural, mas por códigos), uma cadeia de custódia detalhada torna-se ainda mais necessária do que na prova tradicional​conjur.com.brconjur.com.br. Em suma, conforme Badaró, a documentação meticulosa da cadeia de custódia é essencial na análise de dados digitais, pois assegura a autenticidade/integridade e permite a crítica judicial posterior, afastando a hipótese de alterações indevidas do material​conjur.com.brconjur.com.br.
  • Confrontando essas diretrizes ideais com o que ocorreu no caso concreto, o Ministro Ribeiro Dantas apontou inúmeras falhas da autoridade policial. Ele observa que, apesar de tais procedimentos técnicos serem há anos conhecidos, “diversos foram os descuidos” no manuseio dos aparelhos apreendidosconjur.com.br. Não houve qualquer registro documental de como se deu a coleta e preservação dos computadores; não se sabe quem os manipulou, em que datas, nem o percurso administrativo dentro da polícia após a apreensão​conjur.com.br. Mesmo providências básicas – como documentar o que foi feito – foram ignoradas​conjur.com.br. Em especial, o voto destaca a confusão em torno da perícia privada feita pelo banco: o laudo particular do banco (outubro/2017) menciona que o perito recebeu “um arquivo de imagem” da polícia​conjur.com.br, mas não há indicação de como essa imagem foi extraída pela polícia nem qual o hash correspondente para verificar autenticidade​conjur.com.brconjur.com.br. Isso sugere que a polícia já havia extraído cópias dos dados antes mesmo da perícia oficial, porém sem qualquer documentação ou controle. Ademais, o próprio laudo do banco lista como evidências os computadores físicos (com suas especificações)​conjur.com.br, levantando dúvida se a instituição financeira recebeu apenas imagens ou se chegou a ter acesso direto aos equipamentos apreendidos, como alega a defesa​conjur.com.brconjur.com.br. Ou seja, não se sabe exatamente o quê, como, por quem e em que extensão o material sigiloso foi encaminhado ao banco – houve um completo vácuo de informações devido à ausência de registros formais.
  • Quando, finalmente, a Polícia Civil realizou suas perícias oficiais nos computadores (em novembro/2017), a situação mostrou-se ainda pior em termos de cadeia de custódia. Os laudos periciais da polícia não explicaram que metodologia foi utilizada para extrair os arquivos – nada mencionam sobre geração de imagens forenses, cálculo de hash ou procedimentos de validação​conjur.com.brconjur.com.br. Limitam-se a afirmar que o perito “encontrou” determinados arquivos suspeitos e colou capturas de tela de alguns deles, mas não esclarecem o “como” esses arquivos foram obtidos, tratados ou autenticados​conjur.com.br. Essa omissão leva o ministro a concluir que a polícia e o MP, na prática, pedem que simplesmente confiemos na honestidade e eficiência do perito e do aparato estatal, sem oferecer nenhuma comprovação objetiva da regularidade dos atos​conjur.com.br. Essa lógica – de aceitar sem questionar que “deu tudo certo” porque a polícia assim o diz – foi duramente criticada: segundo Ribeiro Dantas, nada mais incompatível com o processo penal democrático e racional, que deve se pautar em comprovações objetivas e não em impressões subjetivas de agentes públicosconjur.com.brconjur.com.br. Ele adverte que no processo penal a atividade do Estado é objeto de controle, e não parâmetro de controle – cabe ao Judiciário verificar se a atuação estatal foi legal, não simplesmente presumir a veracidade a partir de uma confiança autodeclarada do órgão acusador​conjur.com.br. Inclusive, o voto menciona que o Ministério Público, em suas contrarrazões, chegou a tachar as questões de cadeia de custódia como uma “desmedida formalidade”​conjur.com.brconjur.com.br. Para o ministro, tal postura equivale a sugerir que os atos do Estado não precisariam ser submetidos a controle – o que não se coaduna com o Estado de Direitoconjur.com.br.
  • Diante de todos esses pontos, o STJ entendeu configurada uma séria quebra da cadeia de custódia no caso. Conforme o acórdão, a completa falta de documentação impede saber o que realmente aconteceu com as fontes de prova digitais: Como e quando foram extraídos os dados? Quem manuseou os computadores? Eles ficaram o tempo todo sob custódia policial ou estiveram com o banco? – nenhuma dessas perguntas pôde ser respondida​conjur.com.brconjur.com.br. E a consequência é grave: “não há como assegurar que os elementos informáticos periciados pela polícia e pelo banco são íntegros e idênticos aos que existiam nos computadores do réu”conjur.com.br. O ministro frisa que não está afirmando que houve fraude intencional ou adulteração proposital pelos agentes; o problema é que, pela ausência de cuidados mínimos, é impossível saber se ocorreu alguma interferência (dolosa ou acidental)conjur.com.br. Poderiam ter sido excluídos dados favoráveis ao acusado ou inseridos arquivos incriminadores? Em tese sim – e exatamente por não haver garantias, instala-se a dúvida. Tudo isso, conclui, poderia ter sido evitado se a polícia tivesse agido de forma mais profissional e cuidadosa, apresentando alguma comprovação da idoneidade de seus procedimentos​conjur.com.br.

Em termos de resultado, o STJ decidiu anular as provas digitais contaminadas. O agravo regimental foi parcialmente provido para, nessa parte, também dar provimento parcial ao recurso em habeas corpus e declarar a inadmissibilidade das provas obtidas dos computadores de R.L.S.M., bem como das provas delas derivadasconjur.com.brconjur.com.br. Aplicou-se por analogia o art. 157, §1º do CPP, que determina o desentranhamento (exclusão) das provas ilícitas e também das que sejam delas derivadas (doutrina dos frutos da árvore envenenada)​conjur.com.br. O juiz de primeira instância deverá, portanto, identificar quais elementos probatórios do processo originário advêm desses computadores ou foram por eles influenciados, promovendo o desentranhamento de todos​conjur.com.br. Em suma, tanto os dados extraídos diretamente dos dispositivos violados quanto quaisquer provas subsequentes obtidas a partir deles não poderão ser usados no processo, por falta de confiabilidade e por violação às garantias legais básicas de obtenção da prova.

Antes de finalizar, Ribeiro Dantas tratou ainda de responder a possíveis objeções dos colegas sobre sua posição. Uma primeira indagação seria: isso não significaria aplicar retroativamente a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), já que na época dos fatos não vigoravam os artigos específicos de cadeia de custódia? O voto esclarece que não se está retroagindo nova lei, mas apenas reconhecendo princípios probatórios que sempre estiveram presentes no CPP. A ideia de cadeia de custódia é inerente ao conceito de corpo de delito e à necessidade de autenticidade da prova, desde a redação original de 1941 do Código​conjur.com.brconjur.com.br. Assim, mesmo sem dispositivos expressos na época, era (e é) dever do Estado comprovar que o objeto recolhido e periciado é o mesmo ligado ao crime, encargo que não foi cumprido no caso​conjur.com.brconjur.com.br. O ministro lembrou precedentes antigos do STJ que já anulavam provas por falta de integridade muito antes de 2019 – citou, por exemplo, um julgado de 2014 (HC 160.662/RJ, 6ª Turma) em que se reconheceu a quebra da cadeia de custódia de interceptações telefônicas porque parte dos áudios se perdeu e a sequência das conversas ficou truncada​conjur.com.brconjur.com.br. Naquele caso, salientou-se que a ausência de integralidade do material coletado inviabiliza a ampla defesa e compromete a paridade de armas, o que vai contra o direito à prova​conjur.com.br. Ou seja, a jurisprudência já admitia nulidades pela falta de preservação da prova mesmo sem o detalhamento legal do Pacote Anticrime, de modo que o presente caso está em sintonia com essa evolução jurisprudencial.

Por fim, quanto à ideia (defendida por alguns) de que eventuais falhas na cadeia de custódia deveriam ser analisadas apenas no mérito da ação penal, sopesando-se com outras provas disponíveis, Ribeiro Dantas destacou que as regras probatórias existem para evitar erros judiciários e abusos. Ignorá-las pode levar a resultados desastrosos, como condenar inocentes ou acobertar ilícitos estatais​conjur.com.br. Exigir diligência básica da polícia e do MP não é exagero, mas sim condição mínima que o Judiciário não pode deixar de cobrar​conjur.com.br. Assim, ao constatar que no caso concreto a prova digital carecia de confiabilidade mínima, a única resposta compatível com um processo penal justo foi afastá-la dos autos. Essa decisão, ademais, cumpre a missão do STJ de orientar a interpretação do direito federal, criando precedente e mensagem clara para as autoridades: o rigor técnico-científico na coleta de provas é indissociável das garantias processuais. Nas palavras do Min. Joel Ilan Paciornik (que acompanhou o voto-vista), o Tribunal estava “realizando a sua missão de criar precedentes e dar interpretação definitiva” a questões de direito probatório digital, quase uma década após aquele HC de 2014 mencionado​conjur.com.brconjur.com.br.

Impactos do Caso

O precedente estabelecido no AgRg no RHC 143.169/RJ gera repercussões importantes no âmbito do processo penal e da atuação dos órgãos de persecução. Abaixo, analisamos os principais efeitos jurídicos e institucionais dessa decisão, relacionando-os com garantias processuais e reflexões doutrinárias atuais:

  • Importância da documentação e do rigor técnico na prova digital: O caso evidenciou, de forma exemplar, a necessidade de procedimentos altamente rigorosos na coleta e preservação de evidências digitais. A falta de registro adequado sobre quem manipulou, como e quando os dados foram extraídos dos computadores praticamente inviabilizou o uso da prova em juízo. O STJ deixou claro que é ônus do Estado demonstrar a integridade e confiabilidade das fontes de prova que apresenta​conjur.com.br. Não basta presumir que “estava tudo em ordem”; é indispensável documentar passo a passo o tratamento dado aos vestígios digitais. Esse rigor técnico-científico – incluindo ações como o isolamento do dispositivo, a criação de cópias forenses fiéis, o cálculo de hashes de verificação, lacração e cadeia de custódia documentada – passa a ser visto não como mera formalidade burocrática, mas como *garantia fundamental da fidedignidade da prova. Instituições policiais e peritos criminais, portanto, são instados a adotar protocolos profissionais atualizados e a registrar formalmente cada intervenção feita em evidências eletrônicas, sob pena de invalidação posterior. Em suma, o precedente Open Doors reforça uma mensagem pedagógica: prova digital só será aceita se for tratada com o mesmo cuidado e seriedade que se espera em perícias tradicionais, respeitando-se procedimentos que assegurem sua autenticidade.
  • Delimitação da atuação estatal frente às garantias processuais: O caso também serve como limite ao poder investigatório, lembrando que os fins não justificam os meios no processo penal. Por mais grave que seja o crime investigado (no caso, fraudes milionárias), a polícia e o MP não estão dispensados de observar as regras do jogo. Ao condenar a postura do delegado que enviou computadores ao banco informalmente, o STJ reitera que a investigação criminal está subordinada à lei e aos direitos do investigado. Violações na cadeia de custódia ferem o devido processo legal porque comprometem o contraditório e a ampla defesa – afinal, se a defesa não pode confiar na veracidade da prova ou fiscalizar sua origem, fica esvaziada a possibilidade de refutar a acusação. O precedente sublinha que o Judiciário não pode abdicar de seu papel de controle: não se admite aceitar evidências questionáveis com base apenas na confiança na lisura dos agentes públicos​conjur.com.brconjur.com.br. Essa é uma reafirmação prática do sistema acusatório e das garantias processuais: procedimentos policiais devem ser transparentes e passíveis de auditoria pelas partes. Assim, a decisão atua como freio a eventuais arbitrariedades, estimulando uma cultura de responsabilidade e precisão na persecução penal. Em última análise, protege-se não só o direito do réu a um julgamento justo, mas também a credibilidade das próprias instituições de justiça, que se fortalecem ao evitar “atalhos” ilegais ou pouco confiáveis.
  • Reflexões sobre o art. 158 do CPP e aplicação do art. 157, §1º (mesmo antes da Lei 13.964/2019): Uma contribuição relevante desse precedente é consolidar o entendimento de que a cadeia de custódia sempre foi exigível, ainda que as leis vigentes à época dos fatos não a detalhassem expressamente. O STJ adotou a posição de que tempus regit actum (a lei nova não retroage para atingir atos pretéritos), mas isso não impede de reconhecer que o dever estatal de manter íntegro o corpo de delito já derivava do art. 158 do CPP originalconjur.com.brconjur.com.br. Logo, não se trata de aplicar retroativamente os arts. 158-A a 158-F (inseridos em 2020), e sim de exigir o cumprimento de um princípio básico de prova. Essa interpretação traz segurança jurídica: procedimentos policiais feitos antes do Pacote Anticrime não ficam imunes a escrutínio – se houver falhas grosseiras de preservação, a prova pode ser invalidada com base na lógica intrínseca do sistema probatório. O acórdão Open Doors exemplifica essa análise, citando inclusive casos anteriores em que provas foram anuladas por falta de integridade (como no HC 160.662/RJ de 2014)​conjur.com.brconjur.com.br. Quanto às consequências, o STJ aplicou por analogia o art. 157, §1º do CPP (que já existia desde 2008, prevendo a teoria dos frutos da árvore envenenada) para excluir não só a prova direta viciada, mas também todas as informações derivadas dela​conjur.com.brconjur.com.br. Essa abordagem reafirma o compromisso com a depuração do processo penal: provas ilícitas ou duvidosas não devem gerar efeito cascata contra o acusado. Em suma, o precedente conjuga a proteção clássica do corpo de delito (art. 158) com a moderna visão da ilicitude probatória (art. 157), demonstrando que o arcabouço legal brasileiro – mesmo antes das inovações de 2019 – continha instrumentos para salvaguardar a confiabilidade das provas e garantir a paridade de armas.
  • Diálogo com a doutrina contemporânea: O julgamento repercute e valida concepções defendidas por diversos autores da literatura jurídico-penal recente. Como visto, o ministro Ribeiro Dantas incorporou ao seu voto ideias de Geraldo Prado, especificamente o princípio da mesmidade da prova, bem como trechos de Gustavo Badaró, relativos à obrigatoriedade de se registrar detalhadamente todos os procedimentos técnicos realizados em dados digitais​conjur.com.brconjur.com.br. Essa convergência entre jurisprudência e doutrina fortalece ambos os campos: a decisão judicial ganha embasamento teórico, e as teses acadêmicas provam sua relevância prática. Autores como Prado vêm há tempos alertando que sem integridade não há confiança na prova, e que irregularidades na cadeia de custódia fragilizam a acusação a ponto de, em certos casos, imporem a absolvição por insuficiência probatória. Aliás, em recente ementa do STJ relatada pelo Min. Rogério Schietti (2021), mencionada no voto-vista, ressaltou-se que “mostra-se mais adequada a posição que sustenta que se as irregularidades constantes da cadeia de custódia […] forem de tal ordem que impeçam a confiança na prova, a pretensão acusatória deve ser julgada improcedente”, e deu-se o exemplo de substância entorpecente entregue à perícia em saco plástico comum, sem lacre, o que fragiliza a pretensão acusatóriaconjur.com.brconjur.com.br. Essa visão garantista, influenciada pelo pensamento de juristas como Luigi Ferrajoli e seus seguidores no Brasil, permeia o caso Open Doors. Doutrinadores como Luciano Athayde, Gisele Araújo, Bruno Teixeira (dentre outros) também têm enfatizado a necessidade de se aplicar um rigor metodológico na produção da prova digital, sob pena de violações a direitos fundamentais do acusado. O precedente do STJ vem ao encontro dessas ponderações: ao proteger a cadeia de custódia, protege-se não apenas uma formalidade técnica, mas valores caros ao Estado de Direito (legalidade, contraditório, ampla defesa). Portanto, o caso Open Doors tende a ser celebrado na literatura como um marco paradigmático – conforme intitulado por comentaristas – pois sinaliza uma inflexão positiva rumo a um processo penal mais técnico e ao mesmo tempo mais fiel aos direitos do imputado​conjur.com.br.

Em conclusão, o AgRg no RHC 143.169/RJ (Operação Open Doors) fornece um estudo de caso didático sobre como a teoria e prática se encontram no tema das provas digitais. O STJ, ao invalidar uma prova obtida sem resguardo da cadeia de custódia, reafirma o compromisso do sistema de justiça com a confiabilidade das provas e com as garantias processuais. Institucionalmente, o recado é claro: investigações high-tech exigem observância estrita das regras tradicionais de prova, adaptadas ao mundo digital. Para estudantes e operadores do direito, fica a lição de que cada etapa na formação da prova pode ser determinante na sua validade – e que a busca da verdade não pode se desvincular do respeito à legalidade e à ciência forense. Este precedente, rico em fundamentação e referências doutrinárias, certamente integrará o repertório sobre cadeia de custódia no Brasil, influenciando futuras decisões e orientando uma atuação mais diligente das autoridades em casos tecnológicos. Assim, o legado do caso Open Doors é duplo: jurídico, ao estabelecer parâmetros para admissibilidade de provas digitais; e pedagógico, ao difundir uma cultura de maior rigor e transparência na persecução penal.

Referências (decisões e doutrina citadas): Agravo Regimental no RHC 143.169/RJ – STJ (Rel. Min. Jesuíno Rissato, voto-vista Min. Ribeiro Dantas, j. 07/02/2023)​conjur.com.brconjur.com.br; HC 160.662/RJ – STJ (Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 18/02/2014)​conjur.com.br; Os standards metodológicos de produção na prova digital e a importância da cadeia de custódia – Gustavo Badaró, Boletim IBCCRIM, 2021​conjur.com.brconjur.com.br; A cadeia de custódia da prova no processo penal – Geraldo Prado, 2ª ed., 2021​conjur.com.br; entre outros estudos sobre prova digital (Athayde; Araújo; Teixeira et al.).

[1] Advogado, Vice-presidente do Instituto ODS da Amazônia, Presidente da Comissões de ODS da OAB/PA

Paulo Moraes

Proprietário Paulo Moraes Advogados

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