Entre a Fratura da Legalidade Penal e a Instrumentalização do Direito Penal Econômico
Paulo Marcos de MoraesAdvogado Criminalista. Mestre em Direito. Vice-Presidente do Instituto ODS da Amazônia. Presidente da Comissão de ODS, ESG e Compliance da OAB/PA. Fundador do Instituto Consumir e do podcast “Pra Fazer Direito”.
Resumo
Este artigo oferece uma análise jurídica crítica e aprofundada da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334/SC, que reconheceu como crime o não recolhimento de ICMS declarado. O estudo sustenta que a referida decisão viola os princípios da legalidade penal, da taxatividade e da intervenção mínima. Parte-se da premissa de que o inadimplemento tributário, por si só, não possui o substrato típico e doloso suficiente para ensejar a sanção penal. Argumenta-se que o uso do Direito Penal para fins arrecadatórios distorce sua natureza subsidiária e compromete as garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Direito Penal Econômico, ICMS, Tipicidade, Legalidade Penal, STF, Apropriação Indébita Tributária.
1. Introdução
O Direito Penal Tributário brasileiro vem sendo objeto de profundas transformações, especialmente no que tange à expansão dos limites da tipicidade. A decisão do STF no RHC 163.334/SC, ao considerar como crime de apropriação indébita tributária o não recolhimento do ICMS declarado, representa uma inflexão no tratamento penal da inadimplência fiscal. A crítica aqui desenvolvida parte da necessidade de se preservar os postulados do garantismo penal, com destaque para a legalidade estrita e a exigência de dolo específico nas infrações tributárias.
2. A Legalidade Penal e a Tipicidade Estrita
O art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal assegura que não há crime sem lei anterior que o defina. A interpretação extensiva do art. 2º, II, da Lei 8.137/90 para abarcar o inadimplemento de tributo declarado contraria esse princípio, promovendo analogia in malam partem. A tipicidade penal deve ser estrita, exigindo descrição inequívoca da conduta proibida. A decisão do STF, ao ignorar essa exigência, flexibiliza indevidamente o tipo penal.
3. A Relação Tributária e o Contribuinte de Direito
O ICMS é um tributo indireto, cuja responsabilidade tributária recai sobre o contribuinte de direito, geralmente o comerciante. A ideia de que esse agente se apropria de valor de terceiro é dogmaticamente insustentável. O consumidor não integra a relação jurídico-tributária, o que afasta a noção de que haveria bens de terceiros em jogo. A inexistência de relação obrigacional direta entre consumidor e Estado inviabiliza a configuração de apropriação indébita.
4. A Exigência de Dolo Específico
A dogmática penal exige a presença de dolo específico nos crimes contra a ordem tributária. O simples inadimplemento, desacompanhado de intenção fraudulenta, não caracteriza o tipo penal previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/90. A regular declaração do débito junto ao Fisco é elemento que evidencia a ausência de dolo. O STF, ao desconsiderar esse critério, cria um novo tipo penal sem respaldo legal.
5. Direito Penal como Ultima Ratio
O uso do Direito Penal deve obedecer ao princípio da intervenção mínima. Seu acionamento deve ocorrer apenas diante de lesões graves e inequivocamente dolosas. Utilizá-lo como instrumento de pressão arrecadatória compromete sua legitimidade e rompe com a racionalidade penal garantista. A punição do inadimplemento sem fraude transforma o Direito Penal em mecanismo simbólico de coerção estatal.
6. Normas Internacionais e Perspectiva Constitucional
A Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 7.7, veda a prisão por dívida. A criminalização do não recolhimento de tributo declarado colide com esse dispositivo internacional, ao qual o Brasil aderiu. Do ponto de vista interno, a jurisprudência histórica do STJ vinha afirmando que o inadimplemento de ICMS próprio não era crime. A virada jurisprudencial não pode subverter garantias fundamentais, nem legitimar a expansão atípica da norma penal.
7. Considerações Finais
A decisão do STF sobre o ICMS declarado e não recolhido constitui uma perigosa inflexão na dogmática penal tributária. Viola o princípio da legalidade, ignora a ausência de relação obrigacional com o consumidor, desconsidera o dolo específico e banaliza o uso do Direito Penal. É preciso reafirmar que a cobrança de tributos deve ocorrer por vias administrativas e que o Direito Penal não pode ser convertido em ferramenta arrecadatória. Preservar a segurança jurídica e os postulados constitucionais é essencial para a manutenção de um Estado de Direito materialmente garantista.
Referências
BITTENCOURT, C. Roberto. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013.
MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2011.
SALVADOR NETO, Alamiro Velludo. Consulta Jurídica – USP, 2019.
ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Civitas, 1997.
TANGERINO, Davi; CANTERJI, Rafael. Estado, economia e direito penal. São Paulo: Quartier Latin, 2007.