Responsabilidade Médica e Hospitalar no Direito Penal: O Papel do Compliance, Domínio do Fato, Teoria Finalista, Culpa Consciente e Dolo Eventual
A prática médica envolve responsabilidades complexas, especialmente quando ocorrem resultados lesivos ao paciente. Nessas circunstâncias, o médico e a instituição hospitalar podem ser chamados a responder criminalmente, sendo o Compliance uma ferramenta cada vez mais valorizada para reduzir tais riscos. Este artigo aborda a responsabilidade penal médica e hospitalar com ênfase nas teorias do domínio do fato e finalista, na culpa consciente e no dolo eventual, ilustrando com doutrina, jurisprudência e aspectos legais aplicáveis.
A Responsabilidade Penal na Área Médica e Hospitalar: Posição de Garante e Estrutura Hierárquica
A responsabilidade penal na saúde decorre do papel do médico e do hospital como garantes, isto é, de quem assume o dever legal de cuidado e proteção. A posição de garante do médico está prevista no Código Penal Brasileiro, art. 13, §2º, que define a relevância da omissão, caracterizando que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”. Na prática médica, isso significa que o médico deve tomar todas as providências necessárias para evitar dano aos pacientes sob sua responsabilidade, e, caso deixe de agir em situações onde o dever de cuidado é imperativo, pode incorrer em responsabilidade penal.
Os gestores hospitalares também podem responder penalmente, especialmente em situações onde deficiências estruturais ou de segurança levam a um resultado lesivo. A doutrina, representada por autores como Maria Luiza Gorga, enfatiza que o Compliance é essencial para organizar responsabilidades e evitar que tanto médicos quanto hospitais sejam responsabilizados penalmente por falhas sistêmicas .
Doutrina e Legislação: Base para a Responsabilização Penal e o Compliance
A legislação brasileira oferece diversos instrumentos para a aplicação do Compliance e a responsabilização de agentes na área de saúde. A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) exige a implementação de programas de integridade e permite que instituições adotem políticas para reduzir a exposição a riscos legais e criminais. Embora voltada inicialmente para a esfera corporativa, a Lei incentiva práticas de compliance que se aplicam também a hospitais e outras instituições de saúde, considerando sua relevância na gestão de riscos.
A doutrina especializada, como a de Adán Nieto Martín, que trata da relevância do Compliance para prevenir ilícitos penais em instituições, sustenta que o Compliance penal visa reduzir a prática do chamado “direito penal de riscos”. Para o setor hospitalar, ele estabelece um conjunto de procedimentos preventivos que vão desde o correto preenchimento de prontuários até o cumprimento rigoroso de normas técnicas e de segurança.
Teoria do Domínio do Fato: Ampliando a Responsabilidade aos Gestores e Dirigentes
A teoria do domínio do fato, de Claus Roxin, permite que a responsabilidade penal não se limite ao executor direto de uma ação criminosa, mas se estenda também ao agente que possui o controle da situação e das decisões estratégicas. No contexto médico-hospitalar, essa teoria é relevante, pois muitas decisões são tomadas por diretores ou coordenadores que, embora não executem diretamente um ato, têm o poder de evitar práticas ou corrigir omissões.
Um exemplo dessa aplicação está em decisões como a do STJ, que consolidou a responsabilização de gestores de saúde por negligência em situações onde eles tinham o controle das condições de trabalho. Em um caso emblemático, o STJ condenou o diretor técnico de um hospital que, ciente das deficiências nos equipamentos de UTI, não adotou as medidas necessárias, resultando em morte de um paciente (HC 398.611/SP). Essa decisão reflete o entendimento de que a responsabilidade penal pode recair sobre gestores quando estes têm o domínio das circunstâncias e optam por omitir-se.
Teoria Finalista: Dolo e Culpa na Análise das Condutas Médicas
A teoria finalista, de Hans Welzel, diferencia as condutas com base na intenção do agente, sendo essencial para avaliar se o ato médico é doloso ou culposo. O Código Penal, em seus arts. 18 e 19, define a conduta dolosa e a culposa, sendo esta última caracterizada pela negligência, imprudência ou imperícia.
No contexto hospitalar, essa teoria é útil para delimitar quando um erro médico constitui culpa (em suas diversas modalidades) ou se configura dolo eventual. Conforme doutrina de Eugenio Raúl Zaffaroni, a culpabilidade em delitos médicos envolve “uma falha no dever objetivo de cuidado que deve ser observada pelos profissionais de saúde”. Ou seja, quando a conduta infringe o dever técnico e ético, sem intenção, há culpa; no entanto, quando há assunção do risco, pode-se considerar o dolo eventual.
Culpa Consciente e Dolo Eventual: Limites e Consequências Penais
A distinção entre culpa consciente e dolo eventual é particularmente relevante em situações de alto risco na prática médica.
Na culpa consciente, o agente prevê um resultado potencialmente danoso, mas acredita que este não ocorrerá devido à sua habilidade ou ao controle da situação. Por exemplo, um cirurgião que, mesmo ciente da falta de condições ideais, decide prosseguir com uma cirurgia de alto risco, confiando em sua experiência para evitar complicações, pode incorrer em culpa consciente se o resultado adverso ocorrer. Jurisprudência do STJ ilustra essa distinção, considerando que, na culpa consciente, a conduta não implica uma aceitação do dano, mas uma expectativa de que o resultado não se concretize (REsp 1.280.825/SP).
O dolo eventual ocorre quando o profissional prevê o resultado adverso e, mesmo assim, assume o risco de sua ocorrência. Em jurisprudência recente, o STJ reforçou que, para caracterizar o dolo eventual, é necessário que o agente tenha ciência do risco e, conscientemente, aja com indiferença ao resultado. Um exemplo prático no setor hospitalar seria o caso de um gestor que autoriza procedimentos complexos sem equipamento adequado, admitindo que o resultado possa ser fatal. O dolo eventual tem implicações severas para a responsabilização, pois leva à equiparação do ato ao dolo direto, ampliando as penas.
Compliance como Instrumento de Prevenção e Mitigação de Riscos
O Compliance, especialmente no setor de saúde, atua como um instrumento para reduzir a prática de atos que possam ser enquadrados como culpa consciente ou dolo eventual. Maria Luiza Gorga, em sua obra sobre Compliance médico, aponta que a criação de um sistema de monitoramento e revisão de práticas pode prevenir ocorrências graves e, ao mesmo tempo, delimitar responsabilidades, protegendo tanto o profissional quanto a instituição de acusações penais indevidas .
A implementação de um Compliance médico eficaz requer a definição de protocolos claros para lidar com situações de risco, além de um treinamento contínuo para todos os profissionais. Programas de Compliance incluem desde o correto preenchimento de prontuários e registros até o treinamento para lidar com emergências e a correta utilização dos equipamentos. Esses programas visam a criação de uma cultura de segurança e responsabilidade, mitigando riscos que podem resultar em culpa consciente ou dolo eventual.
Jurisprudência e Leis Aplicáveis
As leis e a jurisprudência sobre responsabilidade penal médica no Brasil têm avançado no sentido de adotar as melhores práticas de prevenção e responsabilização. A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que trouxe a noção de Compliance para o setor corporativo, é um exemplo de como o Direito brasileiro caminha para incentivar a criação de ambientes de trabalho que respeitem normas de segurança e conformidade legal.
Além disso, o STJ tem reforçado a aplicabilidade de doutrinas como o domínio do fato e o dolo eventual em casos de responsabilidade penal médica e hospitalar, estendendo a responsabilização aos gestores e coordenadores que, mesmo sem executar diretamente um ato danoso, possuem o controle sobre as condições de trabalho e a supervisão da equipe. Essa jurisprudência destaca a necessidade de um Compliance robusto, que estabeleça claramente as responsabilidades de cada agente dentro da estrutura hospitalar.
Um exemplo relevante é a decisão do STJ no Recurso Especial 1.350.804/SP, onde a Corte reafirmou a possibilidade de responsabilização penal de gestores de saúde que, mesmo sem participação direta no ato, possuem influência decisiva na estruturação e segurança do ambiente hospitalar.
Integração do Compliance com as Teorias do Domínio do Fato, Finalista, Culpa Consciente e Dolo Eventual
A aplicação da teoria do domínio do fato, da teoria finalista e dos conceitos de culpa consciente e dolo eventual ao Compliance penal cria uma estrutura de responsabilidade clara e justa. O Compliance, ao delimitar funções e responsabilidades, facilita a atribuição correta de responsabilidade penal. Isso evita que um médico, por uma falha eventual, seja penalizado por deficiências estruturais que são de responsabilidade dos gestores.
Considerações Finais
A responsabilidade penal na área médica exige uma análise detalhada para diferenciar culpa consciente de dolo eventual e, assim, determinar a extensão da punição. As teorias do domínio do fato e finalista, quando integradas a programas de Compliance, criam uma base para a prevenção de atos ilícitos e a delimitação de responsabilidades.
O Compliance atua tanto para proteger o profissional quanto para assegurar um ambiente de trabalho seguro e organizado, beneficiando o paciente. A integração dessas teorias jurídicas ao Compliance fortalece processos e procedimentos trazendo mais segurança jurídica aos envolvidos