CNJ Põe Fim ao Termo “Erro Médico” como Classificação Processual: Avanços e Desafios na Nova Abordagem
Em uma decisão histórica e há muito esperada pela comunidade médica, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a eliminação do termo “erro médico” nas classificações das Tabelas Processuais Unificadas (TPU). A medida, que substitui a expressão por “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde”, busca corrigir uma distorção grave, eliminando o pré-julgamento embutido na nomenclatura e promovendo maior precisão na análise dos processos judiciais relacionados a desfechos desfavoráveis em atendimentos de saúde.
Essa mudança, entretanto, gera discussões. O novo termo, ao mesmo tempo em que retira uma categorização estigmatizante, pode limitar a precisão dos dados e o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à judicialização da saúde. Vamos explorar os aspectos históricos, a fundamentação técnica, as críticas e os desafios da nova abordagem do CNJ.
A História do “Erro Médico” nas Tabelas Processuais
Desde a criação das Tabelas Processuais Unificadas, o termo “erro” era usado exclusivamente para a Medicina, diferenciando-a de outras profissões e implicando, em certa medida, um pré-julgamento sobre a conduta dos profissionais de saúde. Inexistiam termos como “erro do advogado” ou “erro do engenheiro”; contudo, o “erro médico” permaneceu como uma exceção negativa. Essa classificação alimentava estereótipos e preconceitos, reforçando a noção de culpa do profissional de Medicina antes mesmo do devido processo legal.
A pressão para revisão dessa prática cresceu, e em janeiro de 2024, o CNJ anunciou a eliminação do termo “erro médico”, após petição do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. O órgão alegou que o uso de “erro médico” nas tabelas processuais não só induzia ao julgamento antecipado como contrapunha orientações de entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda uma terminologia neutra, referindo-se a “eventos adversos” na saúde.
A Técnica e a Ética por Trás da Decisão do CNJ
A OMS, assim como o Ministério da Saúde e outras agências nacionais, como ANVISA e FIOCRUZ, já alertaram sobre o impacto negativo do termo “erro médico”. Segundo a OMS, “evento adverso” seria uma categorização mais precisa e menos preconceituosa, refletindo que desfechos desfavoráveis em saúde decorrem de uma série de fatores sistêmicos e não exclusivamente da conduta individual de um médico.
Vera Lúcia Raposo esclarece que nem todo efeito adverso é, por si só, um erro ético ou técnico. Ela sustenta que muitos dos desfechos inesperados em Medicina são resultados naturais de riscos inerentes, muitas vezes inevitáveis, e não de uma falha de conduta. Genival Veloso, por sua vez, destaca que a sociedade frequentemente associa desfechos indesejados a erros, prejudicando o julgamento equilibrado e criando uma imagem negativa do médico, o que favorece uma “presunção de culpa” injusta contra os profissionais de saúde.
Críticas e Limitações da Nova Nomenclatura: “Danos Materiais ou Morais Decorrentes da Prestação de Serviços de Saúde”
Apesar de eliminar o viés presente no termo “erro médico”, a nova classificação não está isenta de críticas. A substituição por “danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde” é considerada por alguns profissionais e estudiosos da área como uma abordagem restritiva. O novo termo limita a categorização do dano aos aspectos patrimoniais e morais, ignorando outros tipos de prejuízos que podem ser discutidos judicialmente, como o dano estético, o dano existencial e o dano temporal.
Segundo Nelson Rosenvald, a amplitude dos danos extrapatrimoniais deveria ser mantida para respeitar a tipologia aberta dos direitos da personalidade e das relações de consumo. A nova nomenclatura, ao focar apenas nos danos materiais e morais, parece ser insuficiente para cobrir a diversidade de danos que podem ser pleiteados em litígios envolvendo saúde.
Além disso, ao adotar uma categorização tão abrangente, que engloba desde cobranças indevidas até suposta má-prestação de serviços médicos, há o risco de diluir informações essenciais para a criação de políticas públicas eficazes. Antes, o número de ações categorizadas como “erro médico” fornecia um parâmetro específico para a judicialização da medicina. Agora, as estatísticas podem se tornar menos transparentes e dificultar a análise precisa dos casos relacionados a desfechos adversos na saúde.
A Importância da Mensuração e a Proposta da Terminologia da OMS: “Eventos Adversos em Saúde”
Para a comunidade jurídica e médica, o principal problema da nova nomenclatura está na perda de um referencial quantitativo claro sobre a judicialização da saúde, essencial para a formulação de políticas públicas e para o entendimento do impacto dos processos judiciais na atuação médica.
Com o novo termo do CNJ, os dados sobre judicialização da saúde podem englobar uma gama tão ampla de relações jurídicas que tornará difícil identificar quais processos realmente envolvem discussões sobre assistência médica e suas complicações. Em vez de uma medida específica, como “eventos adversos em saúde”, agora serão misturados litígios de cobranças, prestações de serviços e discussões técnicas médicas, diluindo o espectro dos dados.
A terminologia da OMS, “eventos adversos em saúde”, se aplica a desfechos clínicos indesejados, facilitando uma classificação precisa das complicações de saúde. Adotar esse termo ajudaria a separar eventos puramente médicos dos demais tipos de litígios e focar nos casos onde há questionamentos sobre a qualidade da assistência.
Avanços e Próximos Passos: Padronização Internacional e Ampliação da Nomenclatura
A mudança do CNJ é um passo importante para corrigir preconceitos históricos contra os médicos, mas ainda carece de uma reformulação completa que abarque o espectro dos eventos adversos na saúde com maior precisão. Alinhar a classificação à terminologia internacional da OMS proporcionaria uma padronização que não só beneficiaria a coleta de dados nacionais como também facilitaria comparações internacionais e promoveria maior clareza na criação de políticas de saúde pública e jurídicas.
A adoção do termo “eventos adversos em saúde” proporcionaria uma categorização mais justa e técnica, alinhada às melhores práticas globais e baseada em critérios científicos e objetivos. Isso não só possibilitaria um monitoramento específico da judicialização relacionada a desfechos clínicos desfavoráveis, mas também facilitaria o desenvolvimento de políticas preventivas e educativas no âmbito da saúde.
Em suma, a decisão do CNJ representa um avanço significativo ao eliminar o estigma de “erro médico”, mas ainda resta a necessidade de uma reformulação mais abrangente e técnica. A substituição do termo por uma nomenclatura precisa e inclusiva, como “eventos adversos em saúde”, permitiria uma abordagem equilibrada, preservando a dignidade dos profissionais de saúde e oferecendo uma análise mais robusta das demandas judiciais, facilitando a formulação de estratégias para a redução de litígios desnecessários e a melhoria da qualidade assistencial.
O caminho está aberto para uma discussão contínua e uma evolução no tratamento das relações médico-paciente, onde transparência, respeito e isenção sejam os valores norteadores. Com uma base sólida de dados específicos, o Judiciário e os órgãos de controle poderão contribuir de forma mais eficaz para uma prática médica segura, ética e justa, refletindo o verdadeiro espírito de proteção ao consumidor e valorização dos profissionais de saúde no Brasil.