A recente ação movida pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a regulamentação das apostas esportivas online trouxe à tona uma série de questões jurídicas, sociais e econômicas que precisam ser analisadas de forma crítica. A Lei n.º 14.790, aprovada em dezembro de 2023, regulamenta o mercado de apostas esportivas no Brasil, setor que vinha atuando de maneira desregulada desde 2018. Com o intuito de declarar a inconstitucionalidade dessa lei, a CNC aponta para uma série de impactos negativos que a expansão do mercado de apostas traria para a sociedade e o comércio brasileiro.
O Argumento Jurídico da CNC
A ação da CNC busca a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 14.790, sob a alegação de que a regulamentação ampliaria os danos socioeconômicos, principalmente para as famílias de baixa renda, além de causar prejuízos a setores do comércio. A confederação alega que o aumento da disponibilidade de apostas esportivas no Brasil eleva o endividamento das famílias e conduz a um comportamento financeiro de altíssimo risco. Segundo o processo, isso estaria gerando uma série de externalidades negativas na economia doméstica e no comércio varejista, além de afetar o desenvolvimento social.
O Histórico da Regulamentação
As apostas esportivas foram legalizadas no Brasil em 2018, sob o governo Michel Temer, mas a regulamentação específica só foi efetivada em 2023, durante o governo Lula. Após anos de inércia legislativa no governo Bolsonaro, que não avançou com a regulamentação, o atual governo federal adotou uma postura ativa, estruturando o mercado de apostas e criando um sistema formal para registro e operação dessas empresas. A Lei n.º 14.790 é o marco que altera a legislação anterior e formaliza os critérios de atuação dessas empresas no país, com previsão de um mercado totalmente regulamentado a partir de janeiro de 2025.
Análise Crítica dos Impactos Econômicos e Sociais
Um dos pontos centrais levantados pela CNC é o impacto negativo que a expansão das apostas teria sobre a economia doméstica, especialmente em relação às famílias de baixa renda. Relatórios recentes, inclusive do Banco Central, apontam que uma parcela significativa de beneficiários de programas sociais, como o Bolsa Família, têm transferido recursos para plataformas de apostas, exacerbando problemas financeiros e endividamento dessas famílias. O apelo de enriquecimento rápido, oferecido pelas apostas, representa um risco especialmente alto para aqueles em situação de vulnerabilidade financeira.
Por outro lado, o setor de apostas é uma realidade consolidada no Brasil e, sem uma regulamentação, o mercado continuaria a operar de forma descontrolada, sem proteção ao consumidor e sem a devida tributação. A regulamentação buscaria mitigar essas questões, estabelecendo parâmetros legais para a atuação das empresas de apostas e mecanismos de fiscalização.
Do ponto de vista comercial, a CNC destaca que os recursos que atualmente estão sendo canalizados para as apostas esportivas representam uma perda de consumo em outros setores da economia. Isso afeta diretamente o varejo e outros segmentos que tradicionalmente competem pela atenção e renda do consumidor. A confederação teme que, ao incentivar a expansão das apostas, o governo estaria agravando essa situação e prejudicando o desenvolvimento de setores produtivos da economia.
Perspectivas Jurídicas: A Constitucionalidade da Lei n.º 14.790
O STF terá que analisar a constitucionalidade da Lei n.º 14.790 à luz dos princípios constitucionais que regem a proteção da ordem econômica, social e familiar. Um dos principais pontos de discussão será a compatibilidade da regulamentação das apostas com o dever do Estado de proteger a sociedade contra comportamentos econômicos de risco, como o vício em jogos e o endividamento descontrolado.
Outro aspecto relevante é o potencial conflito entre a liberdade de iniciativa econômica e o dever do Estado de garantir a segurança financeira e social dos cidadãos. A regulamentação do setor de apostas pode ser vista como uma tentativa de equilibrar essas duas diretrizes: por um lado, permitir que o mercado funcione de forma legal e controlada; por outro, implementar mecanismos de proteção ao consumidor e minimizar os danos sociais.
Considerações Finais
A ação movida pela CNC no STF representa um importante desafio à regulamentação das apostas esportivas no Brasil. As preocupações levantadas pela confederação, especialmente no que tange ao impacto econômico nas famílias de baixa renda e no comércio, são legítimas e devem ser consideradas no debate jurídico. No entanto, é preciso reconhecer que a regulamentação do setor de apostas também traz benefícios, como o controle e a tributação de uma atividade que já está em franca expansão no país.
Ainda assim, surge uma questão moral relevante: **é aceitável que o Estado busque adquirir tributos à custa da exploração dos mais vulneráveis?** O impacto desproporcional nas famílias de baixa renda, expostas a um mercado de risco como o das apostas, precisa ser ponderado com cuidado. O Estado não pode perder de vista que a arrecadação de tributos, embora legítima, deve ocorrer dentro de parâmetros que assegurem a proteção social e a dignidade humana. Adquirir tributos com base em práticas que potencialmente aprofundam a vulnerabilidade social é, no mínimo, questionável do ponto de vista ético e moral.