Paulo Moraes Advogados

acessoriedade nos crimes ambientais

 

PRECEDENTE STJ (RHC 64.430/SP) – INÉPCIA DA DENÚNCIA EM CRIME AMBIENTAL E OS LIMITES DA TIPICIDADE PENAL EM BRANCO

Paulo Marcos de Moraes[1]

Orientadora; Joyce Serra Rodrigues

 

Introdução

O Recurso em Habeas Corpus n.º 64.430/SP, julgado em 19/11/2015 pelo Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma, Rel. Min. Gurgel de Faria), tratou de denúncia por crime ambiental fundada no art. 60 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) – dispositivo que criminaliza a instalação ou operação de atividade potencialmente poluidora sem a devida licença ambiental . O caso envolveu a queima de palha de cana-de-açúcar sem autorização, imputando responsabilidade tanto a uma pessoa física (administrador) quanto à pessoa jurídica envolvida na atividade. Esse contexto reflete um típico cenário de Direito Penal Econômico-Ambiental: a persecução penal de condutas relacionadas a atividades empresariais (no caso, do agronegócio sucroalcooleiro) que violam normas administrativas de proteção ao meio ambiente.

Do ponto de vista jurídico, o caso reveste-se de especial relevância por englobar três temas centrais ao Direito Penal Econômico e Ambiental: (i) a técnica legislativa da lei penal em branco, na qual o tipo penal depende de complemento por normas extrapenais; (ii) a teoria da acessoriedade administrativa, segundo a qual a tipicidade penal, em certos delitos, está condicionada à prévia infração de um dever administrativo; e (iii) a aplicação da teoria da imputação objetiva no âmbito de crimes de perigo ou de mera conduta, em que a violação de normas administrativas serve para delimitar riscos proibidos. Em outras palavras, o julgamento analisado coloca em evidência a intersecção entre Direito Penal e regulação administrativa, mostrando como a atuação empresarial sujeita-se a um duplo controle: sanções administrativas e penais. A compreensão aprofundada desse precedente permite avaliar os limites da tipicidade penal ambiental, a necessidade de descrição precisa da conduta pela acusação e a relação de subsidiariedade/coordenação entre instâncias administrativas e penais na tutela do meio ambiente.

Narração do Caso

Contexto fático: No caso concreto, o Ministério Público ofereceu denúncia contra Alexandre Cury Guerrieri Rezende e a empresa agrícola por ele administrada, acusando-os de executar queimadas em plantação de cana-de-açúcar sem prévia licença ou autorização do órgão ambiental competente. A queima da palha da cana é uma prática comum para facilitar a colheita, porém sujeita a rigorosas restrições legais por causar poluição atmosférica e outros impactos ambientais. O art. 60 da Lei 9.605/98 tipifica como crime “construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes” . Trata-se, portanto, de uma norma penal em branco, que remete às normas complementares de direito ambiental (leis, regulamentos, resoluções etc.) para definir quais atividades são “potencialmente poluidoras” e quais licenças ou autorizações são exigidas em cada caso.

Inépcia da denúncia: A denúncia limitou-se a afirmar genericamente que os réus funcionaram atividade potencialmente poluidora (a queimada da palha da cana) “sem autorização”, sem indicar qual dispositivo legal ou regulamento ambiental específico teria sido violado. Diante dessa suposta vagueza, a defesa impetrou habeas corpus objetivando o trancamento da ação penal por inépcia da denúncia – isto é, alegando que a peça acusatória não descreveu o fato criminoso de forma suficiente, ferindo o art. 41 do Código de Processo Penal (CPP). Este artigo exige que a denúncia narre os fatos com todas as suas circunstâncias, de modo a individualizar a conduta e permitir o exercício da ampla defesa. A ausência de indicação da “norma complementar” (por exemplo, qual lei ou resolução obrigava a obter licença para a queima em questão) tornaria a acusação incompleta e incapaz de sustentar a tipicidade do delito.

Instrumento processual: Após indeferimentos em instâncias inferiores, a defesa interpôs Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) ao STJ. Cabe lembrar que, conforme a jurisprudência consolidada, o habeas corpus é remédio excepcional para trancar ações penais, somente cabível quando há flagrante ilegalidade, como atipicidade manifesta, extinção da punibilidade ou inépcia da inicial acusatória, perceptíveis prima facie. No caso, sustentou-se a última hipótese – inépcia – dada a falha na descrição típica.

Argumentos da defesa: A defesa argumentou que, por se tratar de crime definido em norma penal em branco, a denúncia precisava explicitar qual exigência ambiental foi descumprida (por exemplo, a nomeação da lei, decreto ou resolução que torna ilícita a queima sem autorização naquela localidade ou circunstância). A omissão desse complemento normativo teria duas consequências graves: (a) falta de tipicidade, pois não se aponta concretamente em que consistiu o ilícito (afinal, sem saber qual norma de licenciamento se aplicava, não se pode aferir se a conduta se enquadra no art. 60); e (b) prejuízo à ampla defesa, já que os acusados não teriam como se defender adequadamente de uma acusação genérica. Neste ponto, a defesa invocou o princípio da estrita legalidade e da taxatividade da acusação penal – especialmente importante em delitos econômico-ambientais, nos quais detalhes técnicos (como portarias, resoluções ambientais, termos de licenciamento) fazem parte da definição do ilícito. Assim, a denúncia genérica violaria o direito dos réus de saber exatamente qual comportamento lhes era imputado como criminoso, impedindo, por exemplo, que provassem que possuíam alguma autorização, que a atividade não era proibida naquela situação ou que estavam em conformidade com normas específicas.

Argumentos do Ministério Público: Em contrapartida, o Ministério Público defendeu a viabilidade da denúncia tal como proposta. Em linhas gerais, o MP sustentou que a peça acusatória descreveu suficientemente a conduta proibida – mencionando a atividade (queimada de canavial) e a ausência de autorização ambiental –, o que bastaria para informar os acusados do fato delituoso. Argumentou-se que o art. 60 da Lei 9.605/98, por sua redação, já indica a ilicitude da conduta na falta de licença, sendo desnecessário citar minuciosamente o arcabouço administrativo violado. Em outras palavras, a expressão “sem licença ou autorização dos órgãos competentes” na lei ambiental seria autoexplicativa, cabendo ao detalhe da norma administrativa ser esclarecido durante a instrução probatória, e não como requisito de admissibilidade da denúncia. O MP frisou que a queimada em si é notoriamente uma atividade potencialmente poluidora e regulamentada, de modo que os réus não poderiam alegar desconhecimento do dever de licenciamento. Além disso, invocou-se o entendimento de que eventuais falhas ou imprecisões na denúncia poderiam ser sanadas no curso do processo (principio do pas de nulité sans grief), não justificando a medida extrema de trancamento da ação penal.

Fundamentos do voto do Relator: O Ministro Gurgel de Faria, relator do RHC no STJ, acolheu os argumentos defensivos e votou pelo provimento do recurso, reconhecendo a inépcia da denúncia. Em seu voto (acompanhado à unanimidade pelos demais ministros da Quinta Turma), delineou primeiramente os pressupostos para encerramento prematuro de uma ação penal em sede de habeas corpus, ressaltando que apenas em hipóteses excepcionais – como denúncia manifestamente inepta – admite-se tal medida. Em seguida, examinando o teor do art. 60 da Lei 9.605/98, o relator enfatizou tratar-se de tipo penal incriminador em branco, cuja configuração exige o descumprimento de norma extrapenal:

“O art. 60 da Lei n. 9.605/1998 é norma penal incriminadora em branco, visto que a configuração de seu preceito primário pressupõe o descumprimento de outro ato normativo (complementar) que regulamente as atividades potencialmente poluentes a que tal dispositivo se refere.”​ ​

Desse modo, o próprio conteúdo típico do delito ambiental em questão depende da legislação complementar que estabelece quais atividades demandam licença e em que condições. No caso concreto, apontou o relator, a denúncia não atendeu aos requisitos do art. 41 do CPP, pois “não descreve, por completo, a conduta delitiva, já que apenas afirma genericamente que houve o funcionamento de atividade potencialmente poluidora sem autorização (…) deixando de mencionar a legislação complementar a que se refere a aludida obrigação de natureza administrativa e ambiental”​ . Essa omissão dificulta a compreensão da acusação e prejudica o exercício do direito de defesa  ​. Em outras palavras, a Corte reconheceu que, sem explicitar qual norma de licenciamento foi violada – por exemplo, se existia alguma portaria estadual ou resolução do CONAMA proibindo queimadas sem prévia autorização naquela situação –, a acusação ficou genérica demais, não permitindo delimitar onde exatamente residiu a ilegalidade.

O relator também destacou que tal vício da denúncia repercutia igualmente em relação à pessoa jurídica corré (a empresa agrícola). Pela Lei de Crimes Ambientais, a responsabilidade penal da pessoa jurídica coexiste com a das pessoas físicas que agem em seu nome (art. 3º da Lei 9.605/98). No caso, a empresa fora denunciada pela mesma conduta – queimada irregular. Contudo, uma pessoa jurídica, por sua própria natureza, só pode se defender através de seus representantes e contestando os aspectos normativos e fáticos da acusação. Com a denúncia deficiente, tornava-se impossível também à empresa identificar qual norma ambiental descumpriu e, por conseguinte, estruturar sua defesa (por exemplo, poderia alegar possuir determinada licença, mas não sabendo qual exigência específica o MP considerou violada, ficava onerada indevidamente). Por isso, o voto estendeu expressamente os efeitos da ordem de habeas corpus à pessoa jurídica, para igualmente beneficiá-la com o trancamento da ação pena..

Resultado do julgamento: Ao final, a Quinta Turma do STJ deu provimento ao Recurso em Habeas Corpus, reconhecendo a inépcia da denúncia e determinando o trancamento da ação penal contra ambos os acusados​. Ficou ressalvado, contudo, que o Ministério Público poderia oferecer nova denúncia, desde que observados os parâmetros legais​. Essa ressalva é importante: o trancamento da ação não representou absolvição material dos fatos, mas sim uma oportunidade para o MP corrigir a peça inaugural, descrevendo adequadamente a infração penal em todos os seus elementos (inclusive mencionando a norma ambiental violada). Em suma, o STJ não afastou a possibilidade de responsabilização penal pelo art. 60, mas condicionou-a a uma acusação formalmente apta, ou seja, devidamente especificada quanto aos aspectos técnico-legais subjacentes.

Impactos e Análise Crítica do Julgado

O acórdão do STJ no RHC 64.430/SP produz importantes repercussões jurídicas e doutrinárias no campo do Direito Penal Ambiental e Econômico. A seguir, analisam-se seus principais efeitos e contribuições, articulando-os com os conceitos de norma penal em branco, acessoriedade administrativa e imputação objetiva:

  • Delimitação da tipicidade em normas penais em branco: O caso reafirma de forma pedagógica que, em se tratando de crimes definidos por meio de remissão a normas extrapenais, a tipicidade somente se perfaz com a indicação do conteúdo complementar. Ou seja, a denúncia deve “explicitar qual é o complemento” do tipo penal em branco, sob pena de ser considerada inepta. Esse entendimento – já aplicado pelo STJ em outros contextos, como nos crimes contra a ordem econômica (v.g. exploração de atividade sem autorização legal)​ – fortalece o princípio da legalidade estrita. Garante-se que o acusado saiba, desde o início, qual dispositivo de nível infralegal ou qual obrigação específica configura o ilícito penal que lhe é imputado. Doutrinariamente, isso evita a chamada “ampla indeterminação do tipo”, fenômeno em que a descrição legal genérica só ganha contornos a posteriori, possivelmente afrontando a segurança jurídica. No âmbito ambiental, a decisão impõe um freio ao voluntarismo acusatório, exigindo que o MP detalhe, por exemplo, se a queimada sem licença violou tal resolução do CONAMA, tal artigo de lei estadual, ou qualquer outra norma aplicável. Essa precisão não é mero formalismo, mas condição para se aferir a adequação típica – por exemplo, se determinada queima controlada poderia ocorrer sob certas condições ou se era totalmente vedada. A partir desse precedente, passou a ser pacífico na jurisprudência que a ausência de indicação da norma ambiental complementar torna a denúncia inepta e inviabiliza a ação penal​.
  • Ônus argumentativo do Ministério Público: Uma consequência direta é o incremento do ônus descritivo e argumentativo do MP nas denúncias de crimes ambientais (e, de forma geral, nos delitos de Direito Penal Econômico que envolvam normas técnicas). O acórdão do STJ deixa claro que não basta repetir os termos da lei – é preciso particularizar os fatos. No caso, o simples enunciado “funcionar atividade potencialmente poluidora sem autorização” revelou-se insuficiente, por carecer de detalhes concretos. A partir de então, espera-se que o órgão acusador apresente na denúncia: (a) a identificação da atividade específica e por que ela se qualifica juridicamente como potencialmente poluidora (eventualmente citando listagens oficiais de atividades poluentes); (b) a menção expressa da exigência legal/regulamentar de licenciamento aplicável; e (c) a descrição de como os acusados deixaram de cumprir tal exigência. Essa necessidade reforça a conexão entre instância administrativa e penal: o MP deve, em certa medida, “trazer o direito administrativo para dentro da inicial penal”, demonstrando conhecimento do regramento ambiental incidente. Ademais, o caso assenta que cabe à acusação demonstrar já na fase inicial os elementos normativos do tipo, não podendo transferir todo o esclarecimento para a fase probatória. Como bem destacou o STJ em julgado correlato, “em se tratando de imputação de norma penal em branco, torna-se essencial ao exercício da ampla defesa a indicação das normas complementares supostamente violadas, inclusive para que a defesa possa […] demonstrar que as exigências não se aplicam na espécie”​. Deste excerto, depreende-se que a falta de clareza inicial impõe um ônus excessivo à defesa, que teria de pesquisar por conta própria quais normas poderiam ter sido infringidas e refutá-las em tese. Logo, o precedente impõe um padrão de qualidade às denúncias em matéria ambiental, alinhado à complexidade técnica dessas infrações.
  • Acessoriedade administrativa e limites da responsabilidade penal: O julgamento analisado também ilustra de forma prática a teoria da acessoriedade administrativa nas infrações ambientais. Por essa teoria, a existência do crime depende intrinsecamente da existência de uma ilicitude administrativa prévia. No art. 60 da Lei 9.605/98, isso é evidente: a conduta só é penalmente ilícita se for realizada “sem licença ou autorização” ou em desacordo com normas pertinentes – ou seja, pressupõe-se que o ordenamento administrativo exigia aquela licença ou compliance e houve um descumprimento. No caso concreto, ao exigir que a denúncia mencionasse a norma violada, o STJ reforçou que não há crime sem violação de um dever administrativo específico. Esse vínculo conceitual traz dois importantes limites à responsabilização penal em contextos de accessoriedade: (i) Se a conduta do agente estiver autorizada ou regular perante o direito administrativo, ela não configurará crime – trata-se de “risco permitido” ou atuação dentro da legalidade regulamentar. (ii) Se a própria existência ou aplicabilidade da norma administrativa for duvidosa, controvertida ou não tiver sido claramente transgredida, não se pode avançar para a seara penal. Nesse sentido, o acórdão funciona como garantia de que somente haverá persecução criminal quando ficar claro que o agente ultrapassou os limites do lícito fixados pela autoridade administrativa. Uma implicação prática é a necessidade de coordenação entre esferas: decisões ou fatos administrativos (p.ex., um auto de infração ambiental, um parecer técnico de que certa atividade não precisava de licença, etc.) podem ser determinantes para o destino da ação penal. Embora persista no direito brasileiro a regra da independência das instâncias (é possível punição administrativa e penal cumulativa, conforme art. 225, §3º da CF/88, e art. 3º da Lei 9.605/98), na prática os conteúdos se comunicam. A doutrina aponta a existência de verdadeiros vasos comunicantes entre as esferas, especialmente em tipos penais em branco​. Por exemplo, se um órgão ambiental julgou que certa queimada estava dentro da legalidade (concedendo autorização ou entendendo não ser necessária), dificilmente subsistirá justa causa para ação penal – sob pena de punir alguém por um fato que o próprio poder administrativo não reprovou. Por outro lado, havendo ato administrativo expresso vedando a conduta (por exemplo, indeferindo uma licença de queima) e mesmo assim o agente prossegue, a infração penal se torna manifesta. Portanto, o caso RHC 64.430/SP contribui para delimitar essa linha tênue: a responsabilidade penal ambiental tem como fronteira os limites traçados pelo direito administrativo ambiental. A não observância dessa premissa leva à arbitrariedade – que o STJ corrige ao exigir a referência explícita à norma acessória violada.
  • Vinculação entre infrações administrativa e penal: Em complemento ao ponto anterior, o precedente discute implicitamente a questão da dupla valoração do mesmo fato nas esferas administrativa e penal. No direito ambiental, é comum que uma conduta irregular resulte simultaneamente em sanções administrativas (multas, embargos) e processo criminal. O acórdão do STJ, ao exigir a indicação da regra administrativa violada, estabelece uma ponte necessária entre as duas esferas. Ou seja, para acionar a máquina penal, deve-se primeiro identificar claramente a transgressão ao dever administrativo subjacente. Essa vinculação tem efeito benéfico de evitar bis in idem substancial: assegura-se que não se crie uma figura de crime descolada das normas administrativas, punindo-se penalmente apenas aquilo que já constitui infração administrativa qualificada. Em termos doutrinários, trata-se de uma vinculação moderada: a instância penal não está absolutamente subordinada às decisões administrativas (o juiz penal não está vinculado, por exemplo, a um auto de infração, podendo formar convicção própria), mas também não atua no vazio – precisa das premissas normativas fornecidas pelo direito administrativo. O debate doutrinário aponta soluções entre dois extremos (absoluta desvinculação vs. absoluta vinculação). A tendência, como reflete o caso, é uma solução intermediária: nem o Judiciário penal pode ignorar completamente o que a autoridade administrativa definiu, nem está totalmente atado a ela, mas deve ao menos enfrentar os pontos de contato. No caso da licitação pública (análogas situações de normas penais em branco administrativas), já se discutiu, por exemplo, se a aprovação das contas pelo Tribunal de Contas impediria ação penal por dispensa de licitação ilegal. No âmbito ambiental, pode-se pensar: a existência de uma licença ou de um Termo de Ajustamento de Conduta poderá influir na configuração do crime ou na extinção da punibilidade (vide hipóteses legais de extinção de punibilidade pelo cumprimento de obrigações ambientais, como a Lei 12.651/2012 em certos delitos)​. Em suma, o precedente consolida a compreensão de que infrações administrativas e penais ambientais estão intimamente ligadas na origem, embora tenham tramites e sanções próprios. A atuação do MP e do Judiciário deve levar em conta essa ligação, sob pena de dissociar o crime do contexto normativo em que ele se insere.
  • Imputação objetiva e risco proibido: Sob a ótica da teoria da imputação objetiva, o caso 64.430/SP oferece um interessante exemplo aplicado. A imputação objetiva, desenvolvida por Roxin e adotada pela doutrina moderna, preconiza que para atribuir um resultado ou perigo a um agente é preciso que este tenha criado um risco não permitido que se concretizou no resultado (nos crimes materiais) ou que se enquadra no âmbito de proteção da norma (nos crimes de perigo). Nos delitos ambientais como o do art. 60 – considerados crimes de perigo abstrato ou presumido –, não se exige a demonstração de um dano concreto ao meio ambiente; basta a realização da conduta proibida (funcionar atividade poluidora sem licença) para a consumação do crime. Essa estrutura legal tem sido questionada à luz da imputação objetiva: será que toda falta de licença representa, de fato, a criação de um risco proibido relevante? A decisão do STJ, ao insistir na descrição da norma violada, indica que nem toda ausência de licença “em tese” basta – é preciso verificar se, no caso, aquela licença era realmente exigível e relevante. Em termos de imputação objetiva, a norma administrativa de licenciamento define o limiar do “risco permitido”: se a atividade estivesse licenciada (ou dispensada de licença) dentro dos termos legais, o risco inerente a ela seria considerado tolerado pelo ordenamento; já a atuação à revelia do licenciamento configura um risco não permitido, pois escapa de qualquer controle preventivo. Assim, o crime do art. 60 pode ser entendido como sancionando a criação de um risco juridicamente desaprovado – a operação sem controle ambiental. Contudo, para afirmar que o risco era não permitido, deve-se primeiro conhecer qual era o risco permitido. Daí a importância de apontar qual norma dizia respeito àquela queimada: por exemplo, se determinada resolução permitia queimadas em certas épocas mediante comunicação prévia, realizar fora desses parâmetros seria um risco proibido; se nenhuma norma permitia, qualquer queimada sem autorização é risco proibido. Ao não indicar nada, a denúncia impossibilitou aquilatar isso. Nesse prisma, o acórdão coaduna-se com a teoria da imputação objetiva ao exigir a referência normativa: “quando há uma expressa remissão à norma administrativa na descrição típica, o respeito ou a contrariedade a esta norma é o critério decisivo para definir se a conduta é ou não permitida”​file-hvucf68w8vcncqrjg2e4gk. Em outras palavras, a ilicitude penal aqui deriva diretamente da violação de um dever de cuidado administrativo. A queimada sem licença só tem relevância criminal porque a licença existia como instrumento para evitar queimadas descontroladas (reduzindo riscos de poluição do ar, incêndios, desequilíbrio ambiental, etc.). Caso a exigência legal de licença não se aplique a uma situação específica (por exemplo, queimadas controladas abaixo de certa área, hipoteticamente), então a conduta não criou um risco juridicamente reprovado – estaria dentro do âmbito do risco tolerado pelo sistema. Assim, a imputação de crime ambiental fica condicionada à verificação de que o agente extrapolou os limites do risco autorizado pela norma administrativa. Vale notar que, após casos como este, a jurisprudência ambiental vem gradativamente incorporando critérios de materialidade do perigo: por exemplo, há decisões que entendem ser necessária a prova da potencialidade poluidora efetiva da atividade, não bastando meras formalidades burocráticas​. Tais exigências, harmônicas à ideia de imputação objetiva, procuram evitar que se criminalizem condutas irrelevantes do ponto de vista do perigo ao bem jurídico, utilizando o Direito Penal apenas contra comportamentos que realmente contrariam a finalidade protetiva da norma ambiental.
  • Orientação jurisprudencial e doutrinária pós-caso: O precedente do RHC 64.430/SP rapidamente se tornou referência obrigatória na temática de denúncias em delitos de norma penal em branco. Diversos julgados posteriores do STJ e Tribunais regionais invocam esse caso ao reconhecer inépcias similares – não só em crimes ambientais, mas também em outros tipos penais econômico-regulatórios que dependem de complemento normativo (p.ex. crimes contra a ordem tributária, contra o sistema financeiro, licitações etc., onde também se exige descrição da norma violada)​. Doutrinariamente, o acórdão é citado como exemplo da importância de observância do princípio da determinação em Direito Penal: Gustavo Badaró e outros processualistas destacam a necessidade de a peça acusatória individualizar todas as elementares do tipo, sobretudo quando se trata de elementos normativos (como “sem licença”, “fora dos casos previstos em lei” etc.), sob pena de comprometer a defesa. No campo específico do Direito Penal Ambiental, autores como Paulo de Bessa Antunes e Vladimir Passos de Freitas passaram a frisar, em comentários à Lei 9.605/98, a obrigatoriedade de o MP indicar na denúncia qual norma ambiental foi descumprida – sob influência direta desse julgado do STJ. Além disso, a discussão acadêmica sobre acessoriedade administrativa ganhou impulso, com estudos examinando a interação entre esferas (por exemplo, questionando se a falta de autuação administrativa impediria a ação penal, ou se a posterior regularização ambiental afastaria a tipicidade – temas que tangenciam o decidido). A Revista Brasileira de Ciências Criminais já em 2006 publicara artigos antecipando “os problemas da acessoriedade administrativa” no Direito Penal Ambiental, e decisões como a comentada vêm concretizando soluções a esses problemas ao exigir correlação estrita entre norma administrativa e crime​.

Em conclusão, a análise do caso RHC 64.430/SP evidencia uma evolução importante no tratamento dos crimes ambientais enquanto subespécie do Direito Penal Econômico. O STJ fez prevalecer garantias fundamentais (legalidade e defesa) num ramo marcado pela tecnicidade e pela urgência da tutela coletiva do meio ambiente. O precedente estabelece que a tutela penal ambiental não prescinde da clara delimitação do ilícito administrativo subjacente, sob pena de diluir-se a própria tipicidade. Ao mesmo tempo, confirma que a proteção do meio ambiente por meio do Direito Penal deve conviver harmonicamente com os mecanismos administrativos de controle – sendo o Direito Penal verdadeiramente “acessório” e última ratio, acionado de forma precisa quando há franco desrespeito às normas regulatórias. Trata-se de um acórdão que fortalece a racionalidade e a justiça na persecução penal ambiental: racionalidade, ao integrar conceitos de risco e imputação objetiva na definição do ilícito; justiça, ao resguardar o acusado de acusações genéricas em matérias altamente especializadas. Em síntese, o legado do caso é o aperfeiçoamento no equilíbrio entre efetividade da lei ambiental e respeito às garantias penais, contribuindo para um Direito Penal Econômico mais técnico e legitimado na proteção do meio ambiente.

Referências: Acórdão do STJ no RHC 64.430/SP (Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 15/12/2015)​jurisprudencia.juristas.com.brjurisprudencia.juristas.com.br; Lei 9.605/1998, art. 60​advambiental.com.br; Código de Processo Penal, art. 41; Buscador Dizer o Direito – Jurisprudência STJ (2015)​conjur.com.br; FGV Revista (2019)​repositorio.fgv.brrepositorio.fgv.br; Aula de Direito Penal Econômico (Material de apoio, 2021)​file-hvucf68w8vcncqrjg2e4gk.

 

[1] Advogado, Vice-presidente do Instituto ODS da Amazônia, Presidente da Comissões de ODS da OAB/PA

Paulo Moraes

Proprietário Paulo Moraes Advogados

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