Paulo Moraes Advogados

Geofencing – Investigação

Geofencing: A Utilização de Cercas Virtuais em Investigações Criminais e Suas Implicações Jurídicas no Brasil

Método Utilizado Caso Marielle

Introdução

O avanço da tecnologia tem transformado profundamente a maneira como as investigações criminais são conduzidas. Uma dessas inovações é o geofencing, uma técnica que utiliza cercas virtuais para delimitar áreas geográficas e identificar dispositivos móveis que estiveram em uma determinada localidade e período. Amplamente utilizado no marketing digital, o geofencing tem encontrado aplicação em investigações policiais, levantando discussões importantes sobre sua legalidade, proporcionalidade e respeito aos direitos fundamentais, como o direito à privacidade.

Este artigo explora o uso do geofencing no Brasil, com ênfase na decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do RMS 62.143/RJ, de 26 de agosto de 2020, em que o Google foi obrigado a fornecer dados de usuários ao Ministério Público e à Polícia Civil do Rio de Janeiro para identificar suspeitos envolvidos no assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Além de examinar os aspectos jurídicos, também discutiremos o impacto dessa técnica sobre as garantias constitucionais.

O Que é Geofencing?

Ogeofencing consiste na criação de uma cerca virtual em torno de uma área geográfica específica, por meio de tecnologias como GPS, Wi-Fi, RFID ou redes de celular. Quando um dispositivo móvel entra ou sai dessa área, a tecnologia pode registrar o movimento ou disparar ações automatizadas, como enviar notificações ou coletar dados. No contexto de investigações criminais, o geofencing é utilizado para mapear dispositivos que estiveram presentes em uma área próxima ao local de um crime, permitindo que a polícia ou promotores identifiquem potenciais suspeitos.

Essa técnica se assemelha ao processo de obtenção de registros em uma portaria, por exemplo, para saber quem esteve presente em um prédio em determinado momento. É uma forma de monitorar quem circulou em uma área de interesse sem, necessariamente, violar o conteúdo de comunicações privadas, como acontece em interceptações telefônicas.

O Caso Marielle Franco: Geofencing na Investigação de um Crime de Grande Repercussão

Em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados no Rio de Janeiro. O crime, que teve ampla repercussão internacional, resultou em uma extensa investigação conduzida pelas autoridades brasileiras. Um dos recursos utilizados foi o geofencing, com o objetivo de identificar os responsáveis pelo uso de um veículo Cobalt de placas clonadas, utilizado no dia do crime.

Meses após o assassinato, o veículo foi visto passando pela Transolímpica, no Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 2018. Com base nesse evento, o Ministério Público solicitou que o Google e o Waze fornecessem dados estáticos (tráfego e metadados) de dispositivos que passaram pela via entre 11h05min e 11h20min, num intervalo de 15 minutos. A ideia era identificar o motorista que estava com o veículo clonado, o que poderia fornecer pistas importantes sobre os autores do homicídio.

Decisão do STJ no RMS 62.143/RJ

Em 26 de agosto de 2020, ao julgar o RMS 62.143/RJ, a 3ª Seção do STJ, sob relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, decidiu por maioria que o Google deveria cumprir a ordem judicial para fornecer os dados solicitados. A decisão foi considerada proporcional e fundamentada, baseada no artigo 22 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que trata do fornecimento de dados em investigações criminais, desde que devidamente autorizado por decisão judicial.

A decisão destacou que o pedido se limitava a dados de tráfego, sem envolver o conteúdo das comunicações (interceptação telefônica), o que diferencia essa medida de uma escuta telefônica. O geofencing, nesse contexto, foi considerado um mero mapeamento de presença digital, comparável ao registro de veículos que passaram por um pedágio.

Geofencing e o Direito à Privacidade

O uso de geofencing em investigações levanta questões sobre a proteção da privacidade e dos dados pessoais. No Brasil, a Constituição Federal assegura, no artigo 5º, X, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, garantindo o direito a indenização por danos materiais ou morais decorrentes de sua violação. Além disso, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD),Lei 13.709/2018, regulamenta o tratamento de dados pessoais, impondo regras claras para o seu uso por empresas e pelo poder público.

No caso concreto, a decisão do STJ considerou que o uso do geofencing foi proporcional e justificado por um interesse público relevante – a investigação de um homicídio qualificado contra uma parlamentar defensora de direitos humanos. Além disso, o fornecimento de dados foi limitado a um intervalo de 15 minutos e uma área geográfica específica, sem que fosse necessária a identificação prévia de suspeitos. Essa delimitação foi considerada essencial para evitar a violação desproporcional à privacidade de terceiros.

O Ministro Rogério Schietti ressaltou que, embora a privacidade seja um direito fundamental, ela não é absoluta. Em situações em que há interesse público relevante, como a investigação de crimes graves, é possível relativizar a proteção desse direito, desde que a medida seja autorizada judicialmente, devidamente fundamentada e respeite o princípio da proporcionalidade.

Parâmetros de Legalidade do Geofencing

Para que o geofencing seja utilizado de forma legítima em investigações criminais, algumas diretrizes devem ser observadas, conforme estabelecido pelo STJ no RMS 62.143/RJ e em outros julgamentos:

1. Autorização Judicial: A utilização do geofencing deve ser previamente autorizada por decisão judicial, com base em indícios suficientes da prática de um crime grave. Não é necessária a identificação prévia de suspeitos, mas o pedido deve ser fundamentado e detalhar o período e o local a ser investigado.

2. Proporcionalidade: A medida deve ser proporcional ao objetivo da investigação. Isso significa que a área geográfica e o período de tempo devem ser adequadamente delimitados, de modo a evitar a coleta excessiva de dados de terceiros que não estejam relacionados ao crime.

3. Finalidade: O geofencing deve ser utilizado para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, respeitando os requisitos estabelecidos pelo Marco Civil da Internet e pela LGPD. O uso dessa técnica para outras finalidades, como marketing ou monitoramento indiscriminado, sem interesse público, é proibido.

4. Segurança e Descarte de Dados: Os dados coletados por meio do geofencing devem ser tratados de forma segura, e os usuários não relacionados ao crime devem ser notificados, com seus dados posteriormente excluídos, quando não forem mais necessários para a investigação.

Considerações Finais

O geofencing é uma ferramenta poderosa que, se utilizada de forma proporcional e com a devida autorização judicial, pode ser um recurso valioso em investigações de crimes graves, como o caso Marielle Franco. No entanto, sua aplicação deve ser cuidadosamente regulada para proteger os direitos fundamentais, especialmente o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais.

A decisão do STJ no RMS 62.143/RJ estabelece importantes precedentes sobre os limites e condições para o uso do geofencing em investigações criminais no Brasil. À medida que a tecnologia avança, é crucial que o Poder Judiciário continue zelando pelo equilíbrio entre a segurança pública e os direitos individuais, garantindo que novas técnicas de investigação respeitem as garantias constitucionais.

Paulo Moraes

Proprietário Paulo Moraes Advogados

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